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sexta-feira, 16 de março de 2012

O secretário-geral do Comitê Olímpico Internacional explica os motivos que o levaram a reviver os antigos Jogos gregos e ataca a envolvimento do dinheiro com a prática esportiva

O secretário-geral do Comitê Olímpico Internacional
explica os motivos que o levaram a reviver os antigos Jogos gregos
e ataca a envolvimento do dinheiro com a prática esportiva
Coubertin: 'As paixões mais nobres'
Nascido em 1863 no seio de uma família da aristocracia parisiense, Pierre de Frédy tinha desenhada para si uma carreira militar. Mas o jovem humanista acreditava que o poder da educação era maior do que o das armas. Recusando o destino que lhe fora traçado, tomou para si a missão de uma reforma pedagógica na França. Apaixonado pelo esporte – então visto em seu país como um inimigo mortal da intelectualidade –, o Barão de Coubertin, como se tornou conhecido, visitou a Inglaterra, os Estados Unidos e o Canadá para conhecer sistemas educacionais que aliassem os exercícios físicos aos intelectuais. Convencido de seu sucesso, dedicou-se, em seu retorno à França, a fundar associações desportivas escolares e à sua organização em nível nacional. As fronteiras gaulesas, porém, já eram pequenas para Coubertin, que sonhava em retomar os antigos Jogos Olímpicos gregos. Uma competição multiesportiva internacional era uma idéia impraticável e utópica para a maioria – mas não para o teimoso francês, que, com a ajuda de alguns poucos abnegados, logrou organizar a competição em plena era moderna. Nesta entrevista, o Barão, defensor ferrenho do amadorismo nos esportes, comenta a resistência encontrada ao restabelecimento dos Jogos Olímpicos e já projeta o legado do evento para a Grécia e para o mundo: "Os Jogos Olímpicos, para os antigos, representavam a união do esporte e promoviam a paz. Não é nada visionário recorrer a eles para obter benefícios similares no futuro".
VEJA - Qual foi a intenção dos membros dos fundadores do Comitê Olímpico Internacional ao reviver uma instituição que esteve esquecida por tantos séculos?
Coubertin - O esporte está assumindo uma importância cada vez maior a cada ano, e o papel que desempenha parece ser tão importante e duradouro no mundo moderno quanto era na Antiguidade. Mais que isso, ele reaparece com novas características, é internacional e democrático, adequado, portanto, às idéias e necessidades dos dias de hoje. Mas hoje, como antes, seu efeito será benéfico ou maléfico de acordo com o uso que dele é feito, e da direção a que é encaminhado. O esporte pode trazer à baila tanto as paixões mais nobres quanto as mais rasas; pode desenvolver as qualidades de honra e altruísmo da mesma forma que a ganância; pode ser cavalheiresco ou corrupto, viril ou bestial; por último, pode ser usado para fortalecer a paz ou preparar para a guerra. Ora, nobreza de sentimentos, admiração pelas virtudes de altruísmo e honra, espírito cavalheiresco, energia viril e paz são as necessidades primárias de qualquer democracia moderna, seja ela republicana ou monárquica...
Uma reunião do Comitê, no último dia 10: o Barão e seus pioneiros olímpicos
VEJA - O senhor acredita que, após esta primeira edição, os Jogos Olímpicos realmente se solidificarão como uma competição esportiva internacional periódica?
Coubertin - Com certeza. Não se trata de uma criação local e passageira, mas sim de algo universal e duradouro. Até porque o renascimento dos Jogos não é só fruto de um sonho espontâneo: é a conseqüência lógica das grandes tendências cosmopolitas de nosso tempo. O século XIX viu o despertar de um gosto pelos esportes em toda a parte. Ao mesmo tempo, as grandes invenções desta era, as estradas de ferro e telégrafos, permitiram a comunicação de pessoas de todas as nacionalidades. Uma relação mais fácil entre homens de todas as línguas abriu naturalmente uma esfera maior para interesses em comum. A humanidade tem começado a viver uma existência menos isolada, diferentes raças aprenderam a se conhecer e a se compreender melhor, e ao comparar seus poderes e realizações nos campos da arte, indústria e ciência, uma rivalidade nobre nasceu entre elas, impulsionando-as a conquistas ainda maiores. As Exposições Universais têm reunido em um ponto do globo os produtos de seus cantos mais remotos. Nos domínios da ciência e da literatura, assembléias e conferências vêm unindo os mais ilustres intelectuais de todas as nações. Não poderia ser de outra forma que também esportistas das mais diversas nacionalidades deveriam começar a se encontrar em território neutro. A Suíça tomou a frente ao convidar atiradores estrangeiros para participar das competições de tiro de sua federação; corridas de bicicleta vêm sendo disputadas em todas as pistas da Europa; Inglaterra e Estados Unidos têm se desafiado por mar e por terra; os mais hábeis esgrimistas de Roma e Paris têm cruzado seus floretes. Gradativamente, o esporte está se tornando mais internacional, estimulando os interesses e ampliando a esfera de ação. O renascimento dos Jogos Olímpicos se tornou possível e, posso dizer, até mesmo necessário.
VEJA - Ainda assim, a competição esteve longe de ser uma unanimidade. Como foi a organização?
Coubertin - Quando tive a idéia de convocar em Paris um Congresso Internacional do Esporte, em 1892, logo descobri que isso não seria possível sem alguma labuta preliminar, e me lancei com afinco nessa tarefa. Unificar os grandes clubes esportivos franceses e me comunicar com as sociedades similares de outros países era primordial, de um lado, para não oferecer a estranhos o edificante espetáculo da discórdia nacional e, de outro, para obter do exterior diversos adeptos a essa causa. Na primavera de 1893, a situação tinha melhorado tanto que já era possível convocar um congresso. Tínhamos ótima relação com Bélgica, Inglaterra e Estados Unidos, e convites foram enviados a todas a sociedades esportivas no mundo solicitando-lhes que mandassem representantes para Paris, no mês de junho de 1894. A programação do Congresso foi elaborada de modo a disfarçar seu principal objetivo: o renascimento dos Jogos Olímpicos. Ela trazia apenas questões sobre o esporte em geral. Cuidadosamente, deixei de mencionar tão ambicioso projeto, receando que pudesse levantar tamanha manifestação de desdém e escárnio que acabasse por desencorajar, de antemão, aqueles favoráveis à idéia. Isso porque sempre que eu aludira ao meu plano em encontros em Oxford ou Nova York, ficara tristemente consciente de que minha platéia o considerara utópico e impraticável.
O atleta olímpico: atividade amadora
VEJA - As coisas não mudaram nem mesmo depois do anúncio da realização do evento em Atenas, com o apoio do governo local?
Coubertin - Pouco. Os comitês nacionais e internacionais estavam ocupados recrutando competidores, mas a tarefa não era tão fácil quanto se possa imaginar. Não só era preciso superar a indiferença e a desconfiança. O renascimento dos Jogos Olímpicos incitara certa hostilidade. Embora o Congresso de Paris tenha sido cuidadoso em decretar que toda forma de exercício físico praticada no mundo deveria encontrar seu lugar na programação, os ginastas sentiram-se ofendidos, acreditando não ter recebido proeminência suficiente. A maior parte das associações de ginástica de Alemanha, França e Bélgica está animada por um rigoroso espírito exclusivo. Essas associações não ficaram satisfeitas em declinar do convite para dirigirem-se a Atenas. A federação belga escreveu para as outras federações, sugerindo uma resistência orquestrada contra o trabalho do Congresso de Paris. Eles não se mostraram inclinados a tolerar a presença das modalidades atléticas que eles próprios não praticam; aquilo que desdenhosamente chamam de "esportes ingleses" se tornou, por conta de sua popularidade, especialmente odioso para eles. Felizmente, porém, outras mentes prevaleceram.
VEJA - O profissionalismo parece ser cada vez mais uma realidade no esporte. Os Jogos Olímpicos, com seu caráter completamente amadorístico, são uma resposta a esse espírito?
Coubertin - Sim, é fato que mais e mais um espírito mercantilista ameaça invadir os círculos esportivos. Os homens não correm ou lutam abertamente por dinheiro, mas ainda assim a tendência a um acordo lamentável se alastrou. O desejo de vencer muitas vezes não tem que ver com a simples ambição por uma distinção honrosa. E, se não desejássemos ver o esporte degenerar e acabar pela segunda vez, ele precisava ser purificado e unido. De todas as medidas que levariam a esse desejado objetivo, só uma me parecia totalmente praticável: a criação de uma competição periódica, para a qual as sociedades esportivas de todas as nacionalidades seriam convidadas a enviar seus representantes, colocando esses encontros sob a única patronagem que poderia lançar sobre eles uma aura de grandeza e glória – a patronagem da Antiguidade Clássica! Nos Jogos Olímpicos, as competições serão sempre disputadas com regulamentos amadores. Abrimos exceção para a esgrima, já que em muitos países professores de esgrima militar são soldados ranqueados. Para eles, providenciou-se um torneio à parte. Para todas as outras modalidades, somente amadores são admitidos. É impossível conceber os Jogos Olímpicos com prêmios em dinheiro. Mas essas regras, que parecem até simples, são bastante complicadas em sua aplicação prática pelo fato de que a definição do que constitui um amador difere de um país para outro – às vezes, de um clube para outro.
A família real desfila na abertura: 'O esporte fez uma abertura no coração da nação'
VEJA - Os Jogos foram um sucesso na Grécia. A população tomou parte nas celebrações, e um sentimento de orgulho pelo passado glorioso esportivo se alastrou pelo país. Qual o legado do evento ao país?
Coubertin - É fato amplamente conhecido que os gregos, durante seus séculos de opressão, haviam perdido completamente o gosto pelos esportes. O povo grego, contudo, não é acometido da indolência natural dos orientais, e estava claro que o hábito atlético, dada a oportunidade, voltaria a se enraizar facilmente entre seu povo. De fato, diversas associações de ginástica haviam se formado nos últimos anos em Atenas e Patras, e o público mostrava cada vez mais interesse em seus feitos. Era, então, um momento favorável para dizer as palavras: Jogos Olímpicos. Assim que ficou claro que Atenas auxiliaria no renascimento das Olimpíadas, uma perfeita febre de atividade muscular tomou conta de todo o reino. E isso não foi nada perto do que se seguiu depois dos Jogos. Eu vi, em pequenas vilas longe da capital, pequenos garotos praticamente sem roupas atirando pedrinhas, pulando sobre barreiras improvisadas, e dois moleques nunca se encontravam nas ruas de Atenas sem disputar uma corrida. Nada superava o entusiasmo com que os vitoriosos eram recebidos por seus conterrâneos no retorno às suas cidades natais. Eram recebidos pelo prefeito e pelas autoridades municipais, e aclamados por uma multidão carregando ramos de oliveira e de louro. Nos tempos antigos, o vencedor adentrava a cidade por uma abertura feita especialmente em seus muros. As cidades gregas já não são mais muradas, mas pode-se dizer que o esporte fez uma abertura no coração da nação. Quando se percebe a influência que a prática de exercícios físicos pode ter no futuro de um país e na força de todo um povo, fica-se tentado a imaginar se a Grécia não dará início a uma nova era a partir de 1896.
VEJA - E em relação ao resto do mundo? Os Jogos cumpriram o papel que o senhor imaginava?
Coubertin - É claro que, no mundo como um todo, os Jogos Olímpicos ainda não exerceram nenhuma influência, mas estou profundamente convencido que eles o farão. Esta foi a razão para seu resgate. Como já disse, o esporte moderno precisa ser unificado e purificado. Acredito que nenhuma educação, especialmente em uma época democrática, pode ser boa e completa sem a ajuda do esporte; mas o esporte, para desempenhar seu papel educacional, precisa ser baseado em um desinteresse puro e no sentimento de honra. Foi com esse pensamento em mente que eu busquei reviver os Jogos Olímpicos. Tive sucesso depois de muito esforço. Se a instituição prosperar – e confio que, com o auxílio de todas as nações civilizadas, ela irá prosperar –, acredito que ela pode ser um fator potente, ainda que indireto, na busca da paz universal. Guerras acontecem porque as nações não compreendem erradamente as outras. Não teremos paz enquanto o preconceito que hoje separam as diferentes raças seja erradicado. Para obter este objetivo, que melhor meio do que reunir periodicamente a juventude de todos os países para disputas amistosas de força muscular e agilidade? Os Jogos Olímpicos, para os antigos, representavam a união do esporte e promoviam a paz. Não é nada visionário recorrer a eles para obter benefícios similares no futuro.

 http://veja.abril.com.br/historia/olimpiada-1896/entrevista-barao-pierre-de-coubertin.shtml

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