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sexta-feira, 1 de julho de 2011

Dilma quer calar a História?

Dilma quer calar a História?
Acabar com sigilo eterno dos documentos ultrassecretos pode contribuir para iluminar a história e, mesmo, para fortalecer a democracia brasileira. A presidente Dilma Rousseff, pelo menos no caso, deveria ouvir o PT
Adolf Hitler, Stálin, Mao Tsé-tung: abertura dos arquivos, pelo menos de alguns deles, possibilitou que suas grandezas e barbaridades fossem mais bem compreendidas
Oinglês Ian Kershaw escreveu a mais rigorosa biografia do líder nazista Adolf Hitler, o político que, entre 1933 e 1945, conquistou os corações dos alemães. Outro inglês, Simon Sebag Montefiore, publicou um dos livros mais devastadores sobre o líder comunista Stálin, que governou a União Soviética de 1924 a 1953, quando morreu. A chinesa Jung Chang (autora do impressionante “Cisnes Selvagens”) e o inglês Jon Halliday lançaram uma biografia alentada e devastadora do líder comunista chinês Mao Tsé-tung.

Kershaw pôde escrever “Hitler” (Companhia das Letras), um cartapácio de 1.024 páginas — trata-se da versão condensada pelo próprio autor —, porque os arquivos mais importantes sobre o governo nazista estão abertos à pesquisa. O governo do austríaco Hitler era meticuloso e anotava quase tudo, daí o farto manancial disponível aos pesquisadores. Claro que isto se deve, em grande parte, ao fato de a Alemanha ter sido derrotada na Segunda Guerra Mundial. Tornou-se, por assim dizer, uma nação aberta. Isto não significa que a Alemanha não tem regras para a consulta de documentos secretos e ultrassecretos. Tem, como qualquer outro país. Mas sobre o nazismo, que caiu há 66 anos, tudo está praticamente liberado. Historiadores sugerem que, como muitos nazistas permaneceram no sistema judicial e em outras instâncias de poder da sociedade alemã, alguma coisa se perdeu. No geral, a abertura à pesquisa é escancarada. Daí, repetimos, termos em mãos uma biografia com o grau de excelência da pesquisa de Kershaw. Se você não é especialista — só pesquisadores têm de consultar tudo —, esqueça Joachim Fest. O trabalho de Kershaw, além de muito mais meticuloso, é atualizado, ancorado em novas fontes e documentos. É, por assim dizer, a bíblia sobre Hitler e, acrescente-se, sobre a Alemanha nazista.

Em termos de qualidade, o historiador inglês Robert Conquest é o pioneiro dos estudos sobre os crimes do stalinismo. Na década de 1960, publicou um livro magnífico, “O Grande Terror — Os Expurgos de Stálin” (Expressão e Cultura, 600 páginas). Com sorte, o leitor pode encontrar um exemplar no site do Estante Virtual (www.estantevirtual.com.br). O livro é muito bem documentado e influenciou gerações de pesquisadores. Mas há, obviamente, um problema: Conquest não teve acesso aos principais arquivos soviéticos. Porque estavam fechados, mesmo depois do processo de desestalinização, a partir de meados da década de 1950. Nem mesmo historiadores soviéticos, ainda que comunistas, podiam consultar os arquivos. Com o fim da União Soviética, em seguida a 1991, alguns dos mais importantes arquivos foram abertos à consulta de pesquisadores locais e internacionais. O verdadeiro maná resultou em livros de excelente qualidade, como “O Século Soviético” (Record, 504 páginas), do historiador polonês Moshe Lewin. Talvez seja o livro mais equilibrado sobre o “inverno” soviético de 74 anos. Mas o livro mais sensacional sobre como funcionava o governo de Stálin, e a respeito de como o ditador operava as relações com seus parceiros prediletos, é mesmo “Stálin — A Corte do Czar Vermelho” (Companhia das Letras, 864 páginas), de Simon Sebag Montefiore. O livro só foi possível porque o historiador teve acesso, ainda que restrito, a uma gama impressionante de documentos soviéticos. Depois da ascensão de Vladimir Putin, um homem da Kontora (a KGB), ficou mais difícil pesquisar nos arquivos russos e, mesmo, alguns arquivos permaneceram fechados.

Jung Chang e Jon Halliday são autores de um livraço, “Mao — A História Desconhecida” (Companhia das Letras, 960 páginas). Saímos da leitura, esgotados, com uma pergunta que não quer calar nos lábios: cadê o Tribunal de Nuremberg dos chineses? Os comunistas, açulados por Mao, mataram cerca de 70 milhões de pessoas — isto numa estatística tida como conservadora. Chang e Halliday tiveram muita dificuldade para pesquisar sobre a China comunista porque o governo do País, mesmo sendo mais aberto do que no período de Mao Tsé-tung, mantém a maioria dos arquivos fechados. Lá a história continua sendo escrita por historiadores do Partido Comunista. Mesmo assim, a dupla fez um trabalho extraordinário. Chang chegou a visitar o Brasil para entrevistar João Amazonas, porque o partido do qual foi secretário-geral durante anos, o Partido Comunista do Brasil (PC do B), chegou a ser um apêndice do congênere chinês. O PC do B enviou militantes — como Zezinho do Araguaia e Divino Ferreira de Souza, o Nunes da Guerrilha do Araguaia — para treinar guerrilha na China de Mao Tsé-tung.

O Brasil mantém uma relação paradoxal com os arquivos. Ora quer abri-los. Ora quer fechá-los. Mas o fato é que não temos nenhuma biografia decente do presidente que governou o país por mais tempo, quase 20 anos. Há biografias de Getúlio Vargas, mas nenhuma ampla o suficiente para explicar sua complexidade. Na portentosa “Oswaldo Aranha — Uma Biografia” (Objetiva, 501 páginas), o brasilianista Stanley Hilton conta que Getúlio hesitou, até o último momento, em apoiar a Revolução de 1930 e tentou negociar, no limite, com o presidente Washington Luís. Decidiu pelo apoio quando a revolução já começava a “carregá-lo” nos braços. A história relatada por Hilton indica que há muito a contar sobre o presidente que ficou no poder de 1930 a 1945, sem eleições, e de 1951 a 1954, pelo voto. O jornalista Lira Neto está escrevendo o que se comenta que será “a” biografia de Getúlio. Juscelino Kubitschek, depois de anos no limbo, ganhou uma biografia respeitável: “JK — O Artista do Impossível”, de Claudio Bojunga. Seu único defeito talvez seja o excesso de empolgação, que lhe reduz o aporte crítico. Há pouco, Regina Echeverria escreveu a hagiografia do ex-presidente José Sarney.

Falamos sobre a história da Alemanha, União Soviética, Getúlio Vargas e Juscelino para discutir, em rápidas pinceladas, a polêmica sobre os arquivos ultrassecretos brasileiros. A lei atual garante sigilo aos arquivos ultrassecretos por 30 anos — renováveis a bel-prazer dos governantes. A Câmara dos Deputados aprovou projeto para que os documentos não possam ser consultados por 25 anos, com a possibilidade de renovação por mais 25 anos. Preocupa-se, legitimamente, com a segurança do Estado e, portanto, dos brasileiros. O líder do PT no Senado, Humberto Machado, disse a coisa certa: “Depois de 50 anos não tem mais documento problemático”. Três ex-presidentes, com influência no governo da presidente Dilma Rousseff — José Sarney, Fernando Collor e o onipresente Lula —, querem, porém, sigilo eterno para os documentos supersecretos. Sarney, cuja velhice certamente reforçou o caráter nostálgico, lembrou-se da questão do Acre. Ora, qual país latino-americano teria condições de ameaçar territorialmente o Brasil por conta de questiúnculas sobre o Acre? A Bolívia? Ah, vão dizer: “Evo Morales, na questão da Petrobrás, submeteu o governo Lula”. Nada disso. Lula “entregou-se” a Morales por convicção ideológica — são companheiros. A questão do Acre diz mais respeito aos historiadores, não aos chefes de Estado. Por acaso, o México vai retomar o Texas dos Estados Unidos?

Contrariando a presidente Dilma, que certamente está ouvindo os “historiadores” Lula, Sarney e Collor, mas não historiadores profissionais, como Boris Fausto, Carlos Fico e Daniel Aarão Reis Filho, o PT apoia o projeto que prevê o fim do sigilo eterno dos documentos oficiais apresentados como ultrassecretos. É uma prova de maturidade do PT e também uma questão de lógica. Quem defende a Comissão da Verdade, e a divulgação dos documentos da ditadura civil-militar — o Jornal Opção postula que todos os documentos do período, que em nada ferem a segurança nacional, devem ser abertos à consulta pública —, não pode ficar contra o fim do sigilo eterno.

A história de um país só pode ser contada, da mais forma mais ampla possível, quando os pesquisadores têm acesso irrestrito aos arquivos. Citemos um exemplo. Não se pode construir a história da Guerrilha do Araguaia tão-somente com a versão do PC do B, como vinha sendo feito até pouco tempo. Mas não se pode relatar a mesma história apenas com a versão dos militares. Documentos e versões de ambos os lados devem ser investigados pelos estudiosos que, depois de algum tempo de exame, apresentarão suas interpretações. Não há historiografia inteiramente independente, livre das ideologias. Mas há, sim, histórias mais equilibradas, nuançadas e distanciadas. Não há dúvida de que o livro “A Lei da Selva”, do mestre em história Hugo Studart, é mais objetivo do que as versões apresentadas em livros pelo PC do B, de um lado, e, de outro, pelo coronel Lício Maciel.

Arquivos amplamente abertos iluminam a história de um país e, também, contribuem para que seja mais democrático. Erros e acertos de presidentes, e de quaisquer outros políticos, devem ser apresentados sem escamoteações. A Verdade, que não precisa de Comissão, é construída aos poucos por pesquisadores sérios, não importa se ligados à direita, à esquerda ou ao centro. Mas eles precisam de documentação não expurgada ou distorcida.
J.Opção.

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