Você é muito bem-vindo aqui!

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Em decisão histórica, Justiça de SP proíbe Le Cirque de usar animais


Pela primeira vez na história do direito brasileiro chega-se a uma decisão judicial de mérito reconhecendo que a atividade circense exploradora de animais caracteriza abuso, prática que viola o dispositivo constitucional proclamado no artigo 225 par. 1º, inciso VII, que veda a crueldade.
A ação civil pública ajuizada pela Promotoria do Meio Ambiente de São José dos Campos contra a empresa circense conhecida como LE CIRQUE, que utilizava animais em seus espetáculos, foi julgada procedente pela 6ª Vara Cível daquela comarca (processo original n. 1071/06), sendo tal decisão finalmente confirmada pelos Tribunais Superiores. Sob o argumento de que ocorre abuso na utilização ou exibição de animais cativos em espetáculos públicos, além de violação ao dispositivo constitucional que veda a submissão de animais à crueldade, os promotores Laerte Fernando Levai e Larissa Crescini Albernaz, ingressaram com referida ação aos 13 de julho de 2006, solicitando ao Poder Judiciário a antecipação da tutela para que a empresa LE CIRQUE fosse proibida de utilizar ou exibir quaisquer animais em sua temporada naquele ano e também em datas futuras, vedando-se também a exibição de animais enjaulados ou acorrentados, como propaganda, dentro ou fora do local em que estiver instalado o circo. Depois de quase cinco anos de tramitação, grande parte desse tempo nos Tribunais Superiores, o processo chegou ao fim.
Vale a pena conhecer todas as etapas desse caso que se torna histórico no Brasil. Tudo começou quando o LE CIRQUE se instalou em São José dos Campos fazendo propaganda maciça mediante a utilização de carros de som pelas ruas e até mesmo com um pequeno avião que sobrevoava a cidade para anunciar, a toque de corneta, o espetáculo público que se utilizava de animais. Tão logo tomou conhecimento do ocorrido, a Promotoria de Justiça - que já vinha acionando judicialmente todas as companhias circenses que chegavam na comarca - não hesitou em processar também o LE CIRQUE, na tentativa de impedir a utilização de animais em seu empreendimento artístico. Daí a razão da imediata propositura, pelos promotores acima referidos, de uma AÇÃO CIVIL PÚBLICA, cujo texto segue reproduzido na íntegra:

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA 6ª VARA CÍVEL DA COMARCA DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS.
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, por intermédio dos Promotores de Justiça que a presente subscrevem, nos termos do artigo 129, III, da Constituição Federal, artigo 5º, caput da Lei Federal n° 7.347/85, artigo 103, VIII, da Lei Complementar Estadual n° 743/93 e, ainda, com fundamento no artigo 225, § 1o, VII, da Constituição Federal, artigo 193, X, da Constituição Estadual, no artigo 21 da Lei Estadual n. 11.977/05, artigo 1° e seguintes do Decreto n° 24.645/34 e artigo 32 caput da Lei Federal n° 9.605/98, vem respeitosamente perante Vossa Excelência propor a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL
COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA
a ser analisado liminarmente inaudita altera pars
contra a empresa "AMÁLIA GRISELDA RIOS DE STEVANOVICH E FILHOS LTDA ME" - nome de fantasia LE CIRQUE - pessoa jurídica estabelecida na cidade de Portão, RS 240, n. 4710, São Luís, Rio Grande do Sul, CEP 93.180-000, CNPJ n. 96.485.289/0001-55 e representada por seus sócios AMALIA GRISELDA RIOS DE STEVANOVICH, LUIS STEVANOVICH JUNIOR, GEORGE STEVANOVICH e ROBERTO STEVANOVICH, responsáveis pelo espetáculo circense previsto para se apresentar em São José dos Campos no período de 14 de julho a 13 de agosto de 2006, no terreno situado na avenida Andrômeda, 277, defronte ao Vale Sul Shopping, nesta cidade e comarca, motivando-se a ação do Parquet em vista dos abusos a que são submetidos os animais utilizados em circo, conduta essa expressamente vedada no Estado de São Paulo pelo artigo 21 do Código Paulista de Proteção aos Animais, conforme as razões de fato e de direito a seguir aduzidas.
INTRODUÇÃO
Os circos que utilizam animais em exibições e espetáculos públicos constituem, ainda hoje, uma forma de celebrar o triunfo brutal do homem sobre a natureza. Sua história se confunde com a saga da dominação humana, em remotas eras, quando guerreiros e caçadores retornavam à sal comunidade exibindo escravos aprisionados durante os combates e animais exóticos capturados em terras distantes. Das olimpíadas gregas surgiram os primeiros números circenses, realizados inicialmente sem o uso de animais, apenas com o talento de malabaristas e trapezistas. Tais demonstrações de habilidade humana, apresentadas nos anfiteatros do Império Romano, como o antigo Circo Máximo (366 a.C.) foram, depois, desvirtuadas com as provas de força e subjugação. É o que ocorreu no célebre Coliseu de Roma (90 d.C.), onde se exibiam lutas sangrentas de animais exóticos e de gladiadores. Na época de Nero tais espetáculos tornaram-se ainda mais cruéis, com a matança cruenta de milhares de homens e de animais. Vieram, posteriormente, as companhias mambembes de circo, que percorriam os lugarejos levando consigo inúmeros animais subjugados.
Com as grandes navegações e a anexação de novas terras à sanha imperialista da realeza européia, o sofrimento dos animais atingiu proporções ainda maiores. Na corrida pelas ‘riquezas naturais' dos territórios conquistados vários bichos foram aprisionados nos continentes americano, asiático e africano - onças, macacos, tigres, elefantes, girafas, ursos, aves e rinocerontes - todos eles transportados em condições precárias, nos porões das caravelas e das galés, em penosa travessia pelos oceanos. Grande parte desses animais cativos morria no trajeto. Os sobreviventes, utilizados como símbolo de ostentação pelas Cortes, acabavam às vezes sendo destinados aos circos. Outros eram negociados com as companhias mambembes ou com os zoológicos da época.
Informam os registros históricos que, pelas ruas de Lisboa antiga, diversas formas de escravidão eram ostensivamente apresentadas pela Corte, em funesto desfile onde seguiam, subjugados, homens africanos e animais selvagens arrancados de sua terra. D. Manuel, o Venturoso, durante seus habituais passeios do Paço da Ribeira até o Rossio, gostava de se fazer seguir por um exótico cortejo zoológico, repleto de paquidermes acorrentados, felinos enjaulados, símios barulhentos e pássaros aprisionados, todos vindos de lugares distantes (in " A Fauna Exótica dos Descobrimentos", Portugal: Edição ELO, 1993). Muitos desses animais cativos passaram a serem exibidos publicamente, ensejando demonstrações de coragem e destreza do domador, o qual os submetia a dolorosos procedimentos de adestramento. Aqueles que não resistiam ao cárcere e aos castigos físicos, encontravam apenas na morte a sua libertação.
Depois da montagem do primeiro circo com picadeiro, pelo inglês Philip Astley, em 1770, outras capitais européias o fizeram. Em meados do século XIX o Rio de Janeiro passou a integrar a rota de algumas companhias circenses estrangeiras, embora por aqui já estivesse instalado, desde 1830, o circo Bragassi. Não é difícil imaginar quanto sofrimento vem sendo impingido, desde então, aos animais cativos, para que perfaçam seus números extravagantes nos picadeiros, como tigres saltando por argolas de fogo, elefantes sentados sobre banquinhos, leões resignados pelas chibatas, ursos e macacos pedalando bicicletas, cães andando sobre duas pernas, coelhos e pombos sufocados no fôrro de cartolas, cavalos se ajoelhando submissos, etc.
Entre o fim do século XIX e meados do século XX, nos Estados Unidos, tornaram-se célebres dois tipos de entretenimento popular associados a aberrações: os terríveis "museus da moeda", nos quais se mostrava aos espectadores - a título supostamente educativo - pessoas vítimas de deformações e anomalias genéticas, ao preço de uma moeda de prata. Também se tornaram famosos os "circos itinerantes" Barnum & Bayle's Circus, bem como o Sell's Circus, cujas "atrações" eram anunciadas a altos brados pelas ruas. Nesses circos de horrores, em que se atraía a platéia com um sádico apelo à curiosidade, exibiam-se seres humanos deformados, ora com três pernas ou quatro braços, homens padecendo de obesidade mórbida, outros de anorexia, mulheres barbadas, gêmeos siameses, pessoas com elefantíase, homem com duas cabeças, etc. (in "Freaks, Aberrações Humanas - a exploração de fenômenos físicos humanos em circos e espetáculos itinerantes", Editora Livros e Livros).
Interessante notar que a vida dos animais mantidos hoje nos circos itinerantes não difere muito daquela rotina de humilhação a que eram submetidas as pessoas fisicamente deformadas. Assim como é desonroso exibir a miséria humana, também é desonroso e cruel exibir animais para nosso divertimento. Mas a conhecida lei do mais forte, que determina aquilo que podemos chamar "ética da dominação", fez com que o ser humano se regozijasse em subjugar as demais criaturas. Isso nos propiciou, ao longo dos séculos, a aura de superioridade que vem dificultando nosso verdadeiro processo evolutivo.
É o que constatou o zoólogo Desmond Morris, especialista em comportamento animal:
"Uma das conseqüências ainda sentidas da atitude que considera o homem superior aos animais é o que pode ser chamado de Caricatura dos Animais. Para torná-los inofensivos, transformamo-os em caricaturas engraçadas, como se fossem impostores ridículos apenas de nosso escárnio (...) O fato de que cada um desses animais artistas é grandemente superior à raça humana em determinados aspectos é cuidadosamente ignorado. Somos nós que decidimos as condições nas quais eles devem se apresentar e essas condições são sempre nossas, de modo que nossa posição não fique ameaçada" (in "O Contrato Animal", Editora Record, p. 40).
Ora, o que significa estalar o chicote para que os tigres se curvem resignados ou que saltem em direção ao fogo? Qual a função do bastão que faz um mamífero de quase uma tonelada se deitar diante do domador? Por que os camelos se ajoelham e os cavalos correm em círculos? E o urso ciclista, como desenvolve tal façanha? Já os macacos chimpanzés, por acaso têm alguma afinidade ou afeição à música humana a ponto de fazê-los rebolar no picadeiro? Quem fornece resposta a essas indagações é Desmond Morris:
"Se, por acaso, eles possuírem uma característica inegavelmente superior à nossa, então temos de aplicar uma nova regra. Tal regra estabelece que se um animal é particularmente bom em alguma coisa, precisamos planejar um espetáculo que diminua essa qualidade. O exemplo mais óbvio é a força bruta. O leão, o tigre e o elefante são claramente mais fortes do que nós, por isso organizamos espetáculos em que sejam dominados pela habilidade e pela astúcia humanas. O domador de leões estala seu chicote e o leão pula, atravessando um arco; o treinador de elefantes levanta seu bastão e o poderoso animal curva-se diante de nós. Fez-se do leão um medroso covarde para a nossa diversão, e o elefante foi transformado em um idiota pesadão e desajeitado. Nós nos divertimos e aplaudimos essa encenação cruel do poder do homem sobre a natureza" (in Obra citada, p. 41, grifos nossos).
Impossível não ver que um animal cativo, utilizado por toda sua vida em exibições circenses, está em permanente situação de sofrimento. Ainda que receba alimentação, que tenha a assistência de veterinário ou um abrigo contra intempéries, nada pode ser comparado àquilo que lhes foi tirado, o seu bem mais precioso, a liberdade. Viajando nas carrocerias dos caminhões, de sol a sol, em pequenas jaulas, para depois apresentarem nos picadeiros o número que lhe condicionaram pela violência, esses animais padecem em resignado silêncio. O aplauso inconsciente da platéia, ao final de cada exibição, é o mais doloroso estímulo para que esse abuso continue se prolongando no tempo, sem que os adultos - ou as crianças ali levadas - percebam seu equívoco ao prestigiar esse triste espetáculo de dominação humana.
Caçados ou nascidos em cativeiro, pouco importa, os animais de um modo geral têm permanecido à margem da lei. Apesar da vigência de um estado de direito em território brasileiro e do amplo mosaico normativo ambiental, de se lamentar que nossos legisladores - preocupados com a proteção dos homens em sociedade - não titubeiem em excluir os animais de qualquer perspectiva ética. O Direito e as relações jurídicas, via de regra, refletem os interesses econômicos preponderantes, afastando-se cada vez mais das leis da natureza, as quais existem independentemente da vontade dos homens. Destinados à labuta, ao divertimento público, à alimentação ou à vaidade de seus algozes, durante séculos os animais vêm cumprindo em silêncio sua triste sina servil. Se o regime de escravidão africana iniciou-se no Brasil em 1549, ao cabo de três séculos ele estaria extinto. Os animais, ao contrário, continuaram submetidos aos grilhões da insensibilidade humana.
Circo com animais, portanto, é uma atividade cruel e abusiva. Deforma a realidade natural e atenta contra a dignidade dos seres vivos transformados em escravos. Também é um espetáculo anti-pedagógico, porque se propõe a transformar uma conduta artificial e violenta em uma realidade cultural. Os adultos deveriam refletir sobre isso antes de levar as crianças aos circos que exploram animais. Mesmo que se diga que o intuito de moderno circo com animais não é o de perfazer exibições de adestramento, o simples fato de exibir o bicho cativo - e evidentemente subjugado - em lugar hostil à sua natureza, exposto à curiosidade daqueles que acreditam ser normal o degradante espetáculo da dominação, já é o bastante para que se tente impedir, judicialmente, a reiteração de uma ordem cultural desvirtuada.
DOS FATOS
O circo LE CIRQUE, que estréia temporada aqui em São José dos Campos, não foge à regra das companhias circenses que insistem em manter animais atuando - de uma forma ou de outra - em seus espetáculos. Ainda que possa sustentar o contrário, dizendo que a mera exibição dos animais não é ilegal e nem imoral, a simples presença de bichos exóticos sob a lona de um circo que perfaz viagens sucessivas e constantes, em ambientes anômalos se comparados ao habitat de espécies de origem africana ou asiática, induz neles - de qualquer modo - comportamentos antropomórficos. Conforme se verifica do expediente encaminhado à promotoria, pela prefeitura (alusivo ao processo n. 52463-2/06), a requerida pretende a utilização dos seguintes animais no picadeiro:
1 elefante africano
3 elefantes indianos
2 girafas
2 chimpanzés
1 hipopótamo
1 rinoceronte
1 zebra
1 camelo
1 babuíno
pôneis
cães
Não é preciso muita imaginação, aliás, para saber que as anômalas performances desses animais em cena, traduzidas em práticas antropomórficas, são incompatíveis à natureza dos bichos. Via de regra os comportamentos induzidos aos animais, no picadeiro, decorrem de cruel adestramento. Certamente eles não executariam os números que perfazem no circo se não fossem forçados a isso, independentemente do fato de terem nascido, ou não, em cativeiro. Elefantes que sobem em banquetas ou que se deitam no palco, macacos ciclistas e dançarinos, cães equilibristas, dentre outras exibições de destreza ou hipóteses de subjugação à natureza animal, permitem concluir que o espetáculo oculto do circo é perverso em relação aos bichos ali forçados a fazer o que, em condições normais, não fariam. Apenas isso já é suficiente para fazer emergir, no caso concreto, o verbo abusar contido no caput do artigo 32 da Lei n. 9.605/98.
Pouco importa que o IBAMA tenha firmado declaração favorável à empresa ora requerida, no sentido de que os animais não têm indícios de maus tratos ou que possuem regular procedência. É que o argumento da promotoria, neste processo, não se limita à ação material de maltratar, mas a uma conduta que se projeta além dessa perspectiva: a de sujeitar animais a abuso. Sabe-se, afinal, que uma criatura mantida longe de seu verdadeiro habitat, privada da convivência com outros membros de sua espécie e sem possibilidade de reprodução, não alcança o bem-estar ou um grau satisfatório de felicidade. Mais que isso. Viajando pelas estradas em carretas de caminhão, sem destino fixo ou qualquer perspectiva de alcançar uma vida tranqüila, os bichos de circo sofrem com a obrigatoriedade da exibição pública, sob apupos da platéia, ruídos de todo gênero e ritmos musicais capazes de ofender seus ouvidos e sua capacidade mental. Em condições normais, como já dissemos, eles não fariam aquilo tudo que são obrigados a fazer.
Não há, portanto, escolha para os animais cativos. Mesmo que se tente demonstrar o contrário, impossível não ver que os treinamentos condicionantes - ainda que para a mera exibição pública - desafiam a natureza intrínseca dos bichos, amedrontados com os comandos verbais, ameaças de espancamento ou privações alimentares, tudo isso para que obedeçam ao domador. O que era natural transforma-se, pelo medo, em comportamento induzido e/ou condicionado, cujas ações e gestos acabam sendo direcionados, pelos animais, aos fins que se lhes impuseram. É o que a ciência comportamental costuma denominar fator condicionante externo.
Importa lembrar, nessa linha de raciocínio, que o reconhecimento científico de que homens e animais possuem semelhante estrutura morfológica, comportamental e neurofisiológica, provém das teorias evolucionistas de Charles Darwin, que, em 1872, publicou seu derradeiro livro: "A expressão das emoções no homem e nos animais". Essa obra, que assim como a célebre "Origem das Espécies" (1859), teve o mérito de desafiar o mito bíblico da criação, mostrando que os animais têm emoções - afeto, raiva, medo, ciúme, solidão, alegria, tristeza - manifestadas por meio das expressões. Contrariando o pensamento científico de seu tempo, ao assegurar que os organismos seriam meras modificações de um arquétipo central, Darwin demonstrou que o desenvolvimento embriológico nos animais tende a seguir a linha evolutiva de cada raça. Sua tese, certamente, deu origem - tempos depois - ao estudo biológico comportamental, hoje um dos ramos da neurociência.
A obra de Darwin, em suma, fez desmoronar velhos tabus. Todos os seres vivos, homens ou animais - demonstrou ele - fazem parte de uma mesma escala evolutiva e, de acordo com as características de cada espécie, têm uma forma peculiar de demonstrar emoções e sentimentos. A capacidade de raciocínio, correlata ao formato e à dimensão de cada cérebro, não implica em maior ou menor sensibilidade, de modo que soaria preconceituoso estabelecer distinções entre as espécies com base em critérios fisiológicos ou em seu grau de discernimento. Sabe-se, pelos estudos comparativos de DNA, que os chimpanzés possuem 98% da carga genética do homem, o que abaliza a tese darwiniana sobre a descendência humana do macaco. Provou-se, posteriormente, além da similitude na estrutura nervosa dos animais, a existência de sistema límbico (responsável pelas emoções) em todos os mamíferos, o que demonstra sua capacidade de sentir dor e exercer funções mentais.
Hoje é indubitável, do ponto de vista científico, que os animais experimentam sensações subjetivas múltiplas, porque suas atitudes - diante de situações adversas - assemelham-se àquelas assumidas pelo homem frente às adversidades. O sistema nervoso central, tanto o do homem como o dos animais, está organizado morfológica e funcionalmente segundo o mesmo modelo estrutural, variando de acordo com as características peculiares de cada espécie. Esta, aliás, é a constatação da professora Irvênia Luiza de Santis Prada, especialista em neuroanatomia animal e cujos alentados estudos projetaram novas luzes à compreensão da matéria.
Partindo da premissa de que na base do encéfalo reside o mecanismo neurológico responsável pelos instintos de autopreservação, de reprodução, de respiração, de agressividade e de demarcação territorial (existente nos peixes, nos anfíbios e nos répteis) e que em sua parte frontal-superior encontram-se as estruturas relacionadas à expressão de comportamentos e emoções (existente em todos os mamíferos), com a ressalva de que no homem apenas o córtex cerebral é mais desenvolvido que nas demais espécies, conclui a ilustre pesquisadora da USP: "Quanto mais desenvolvido o sistema nervoso de uma determinada espécie animal, maior capacidade terão os indivíduos dessa espécie de se expressar em comportamentos mais elaborados" (in "Alma dos Animais". Campos do Jordão: Editora Mantiqueira, 1997).
Apesar dessas evidências todas, a teoria do animal machine - em que René Descartes, no século XVII, equiparava os animais a meros autômatos incapazes de raciocinar ou de sentir dor, como se as reações do corpo constituíssem apenas reflexos a estímulos externos - continua a fazer escola. Ao negar aos bichos qualquer possibilidade de valorização ética, sob o fundamento de que se eles possuíssem alma a teriam revelado através da palavra, o antropocentrismo se impôs como doutrina dominante, permitindo a ascenção do racionalismo e, conseqüentemente, a exploração de animais em diversas atividades relacionados ao divertimento humano, não raras vezes sem qualquer questionamento de ordem moral.
Em termos biológicos existe, porém, uma essência única comum aos seres vivos, apesar de algumas diferenças estruturais na organização funcional do sistema nervoso de cada espécie. O mecanismo da dor, associado a uma ação de causa e efeito e que se relaciona, em regra, à destruição de células ou tecidos do organismo, é semelhante em todas as criaturas. Esse fenômeno também se manifesta no campo psíquico, quando a angústia decorrente do confinamento de um animal livre, por exemplo, pode levá-lo à morte. A dor é universal. Não há porque graduá-la com base na diferença entre as espécies. E o abuso? Ainda que tal prática não venha acompanhada de dor física, impossível negar que se caracteriza por situações anômalas que causam estranheza ou repulsa ao nosso bom-senso. Afinal, animais cativos em circo, utilizados sempre de forma incompatível à sua natureza intrínseca, estão permanentemente submetidos a abusos.
Nem sempre conseguimos enxergar a verdade das coisas, porque determinados conceitos aparentemente corretos costumam passar de geração a geração sem maiores questionamentos. Animais aprisionados em zoológicos, por exemplo. Muita gente considera natural e saudável vê-los tristes atrás das grades, cumprindo resignados seu implacável destino. Tal situação, na essência, não difere muito da exibição de animais cativos em circos, porque de uma forma ou de outra os bichos estão privados de liberdade e vivem em ambientes antropomorfizados. A questão é, portanto, cultural. Nossa sociedade passou a considerar natural aquilo que, na realidade, é fruto de uma deformação da própria cultura humana. A postura antropocêntrica dominante desloca o eixo da ação do ser para o viver, da reflexão para a razão e do existir para o usufruir. Permite-se o amplo domínio do homem sobre o planeta, como que tentando buscar um significado funcional para tudo o que existe. Sobre os ditames da deusa-razão o mundo se torna o mundo dos homens, concepção essa que levou a um inegável estreitamento dos nossos valores morais. Diante da competitividade imersa nas leis de mercado, sucumbe a virtude, a complacência, a temperança, o senso de justiça e os sentimentos de compaixão que se deve ter pelas criaturas escravizadas ou sumariamente condenadas pelo homem. Cabe ao Direito, em face dessa situação opressiva que hostiliza os mais fracos, resgatar o verdadeiro sentido do Justo.
.DO DIREITO
Do ponto de vista moral e ecológico, a tutela dos animais, sabiamente preconizada no artigo 225 § 1o, VII da atual Carta Magna, restou viabilizada - em sede penal - com a vigência da Lei dos Crimes Ambientais. O legislador ordinário, seguindo o mandamento constitucional impeditivo das práticas que coloquem em risco a função ecológica da fauna, que provoquem a extinção das espécies ou, então, que submetam os animais à crueldade, estendeu a proteção jurídica da fauna de modo a abranger os bichos silvestres (aqueles que vivem livres em seu habitat peculiar), os exóticos (originários de outros países), os migratórios (espécies nômades, que atravessam fronteiras), os domésticos (animais já habituados ao convívio humano, em regra mansos) e os domesticados (espécies silvestres que se tornaram dependentes do homem), sejam eles do meio terrestre, aéreo ou aquático.
Ainda que aparentemente as leis ambientais brasileiras priorizem a tutela da fauna silvestre, por estar ela inserida no contexto dos ecossistemas e da biodiversidade, não se pode esquecer que nossa Constituição Federal vedou a submissão de animais à crueldade, fazendo-o em sentido amplo. Desse modo, as espécies que compõem a fauna doméstica e a domesticada, nativa ou exótica, normalmente submetidas às regras civis do direito de propriedade, também tiveram a atenção do legislador e, via de conseqüência, a tutela jurídica pelo Ministério Público.
Afinal, o índice de crueldade em relação a esses animais, vítimas de um perverso sistema econômico ou das inúmeras expressões da maldade humana, na cidade ou no campo, é impressionante. A lei brasileira, ao incriminar as práticas que submetam os bichos a atos cruéis - abusos, maus-tratos, ferimentos ou mutilações - ergueu voz em favor da incolumidade de todas as espécies, permitindo concluir que, na hipótese do artigo 32 da Lei 9.605/98, o bem jurídico preponderante é o respeito devido aos animais. Estes, e não a coletividade, é que devem figurar como sujeitos passivos preponderantes no crime de crueldade.
Nos circos, assim como nos zoológicos, a natureza dos animais também acaba sendo subvertida por um alienante discurso cultural relacionado à suposta finalidade recreativa da fauna. Transformados em mercadoria de troca ou propriedade particular, tornam-se os animais mudos escravos, peças de reposição, fantoches de uma triste comédia. Tamanha opressão não se limita aos picadeiros ou aos treinos, mas às contínuas viagens dos circos itinerantes, sob chuva e sol, calor e frio, em estradas áridas e turbulentas. Privados de liberdade e de respeito, os "animais artistas" formam um triste comboio de resignados prisioneiros. O aplauso do público, ao final de cada apresentação deles, representa - na realidade - um inconsciente estímulo à insensibilidade humana.
A legislação brasileira - independentemente de seu pretenso contexto ecológico - protege os animais todos, colocando-os a salvo de maus tratos e crueldades, direito esse projetado no âmbito constitucional.
A Constituição da República, no capítulo do Meio Ambiente, assim dispõe:
Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1° - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(...)
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade".
A Constituição Estadual também é explícita nesse sentido:
Art. 193 - O Estado, mediante lei, criará um sistema da administração da qualidade ambiental, proteção e controle e desenvolvimento do meio ambiente e uso adequado de recursos naturais para organizar, coordenar e integrar as ações de órgãos e entidades da Administração Pública direta e indireta, assegurada a participação da coletividade, a fim de:
(...)
X - proteger a flora e a fauna, nesta compreendidos todos os animais silvestres, exóticos e domésticos, vedadas as práticas que coloquem em risco a sua função exológica e que provoquem extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade, e fiscalizando a extração, produção, criação, métodos de abate, transporte, comercialização e consumo de seus espécimes e subprodutos.
O antigo Decreto 24.645/1934, ainda vigente, trata das medidas de proteção aos animais:
Art. 1° - Todos os animais no país são tutelados do Estado.
Art. 2°, § 3°: Os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras dos animais.
Já a Lei de Crimes Ambientais (Lei federal n° 9.605/1998), finalmente, contempla o seguinte tipo:
Art. 32 - Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.
É fundamental que se diga, nesta ação civil pública, que ano passado a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo promulgou o Código de Proteção aos Animais do Estado (Lei estadual n. 11.977/2005), diploma esse que, apesar dos pesares, possui um artigo específico que trata da hipótese do uso de animais em circos:
Art. 21 - É vedada a apresentação ou utilização de animais em espetáculos circenses.
Isso demonstra que o legislador paulista opôs-se ao uso de animais em circo, proibindo tal conduta. Referida norma, ao contrário de outras inseridas na mencionada legislação, não teve sua eficácia suspensa, merecendo, portanto, ser efetivamente cumprida aqui em São José dos Campos.
Dentre os princípios constitucionais da ordem econômica, relacionados no artigo 170 da Constituição Federal, está o da defesa do meio ambiente, no qual se inclui a proteção aos animais. Isso porque a Constituição pôs a natureza - da mesma forma que a fauna - na condição de bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Como bem anotou o jurista José Afonso da Silva, a defesa do meio ambiente - elevada ao patamar de princípio da ordem econômica - tem o efeito de condicionar a atividade laborativa ao respeito à natureza e, por conseguinte, aos animais que o legislador protegeu da crueldade: "... contra a terminologia direitos do homem, objeta-se que não há direito que não seja humano ou do homem, afirmando-se que só o ser humano pode ser titular de direitos. Talvez já não seja mais assim, porque, aos poucos, se vai formando um direito especial de proteção aos animais. Nessa mesma linha de raciocínio, conclui o ilustre constitucionalista, a defesa do meio ambiente é um daqueles princípios "que possibilitam a compreensão de que o capitalismo concebido há de humanizar-se" (in "Curso de Direito Constitucional Positivo", São Paulo: Editora Malheiros, 2001).
Se conjugados entre si os mandamentos do artigo 225, § 1º, VII, da Constituição Federal - proibitivo da crueldade contra animais - e do artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais (Lei federal nº 9.605/98), que incluíram todos os animais em seu manto protetivo, inclusive os domésticos e os exóticos utilizados em exibições circenses, não será difícil concluir que a tutela da fauna alcança também os animais sujeitos às normas civis que regem o direito de propriedade, porque aquele dispositivo magno possui um conteúdo moral que se afasta da vertente antropocêntrica do direito ambiental brasileiro.
Em que pese o teor dos dispositivos constitucionais que no artigo 5º da Carta Política asseguram a qualquer indivíduo o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (inciso XIII) e o direito de propriedade (inciso XXII); que no artigo 6º relaciona o trabalho como direito social ; que no artigo 170 estabelece os princípios gerais da atividade econômica, assegurando a todos o livre exercício de qualquer atividade comercial (parágrafo único), não se pode esquecer que - por outro lado - o legislador ambiental também tutelou os animais, como criaturas sensíveis que são, vedando as práticas que os submetam à crueldade. O mandamento do artigo 225 § 1o, VII da Constituição Federal, se confrontado com aqueles outros, prevalece.
Não existe hierarquia entre as normas constitucionais, cujos dispositivos devem conciliar desenvolvimento econômico, bem estar humano e meio ambiente sadio. Se o artigo 215 § 1o resguarda as manifestações da cultura popular e o artigo 225 protege os animais da submissão à crueldade, evidente que o exercício de um espetáculo público não pode atentar contra seres vivos, mesmo porque o artigo 170, VI, da CF estabelece a defesa do ambiente como princípio geral da atividade econômica.
Daí a conclusão de que o espírito protecionista do direito ambiental não se deve ater somente ao viés ecológico, que classifica a fauna como recurso natural ou bem difuso, tampouco se curvar a preceitos de ordem econômica e laborativa, mas viger em função daquilo que a Constituição preconiza no artigo 225, § 1o, VII: vedação à crueldade. Ora, se a norma constitucional trata de uma prática correlata à desumanidade - crudelis , que, em sentido próprio, é aquele "que gosta de fazer correr sangue, e daí: cruel, desumano, insensível" (professor Ernesto Faria, "Dicionário Escolar Latino Português". Rio de Janeiro, FAE, 1985), ou, então, "qualidade de cruel ou o ato cruel" (professor Antenor Nascentes, "Dicionário de Sinônimos". Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981) - erigindo o dever de proteção aos animais em relevante questão moral, foi porque reconheceu que um ser vivo, longe de constituir mera res ou bem de consumo, é capaz de vivenciar dores, aflições, angústias e sofrimentos. Esse dispositivo supremo, tanto na Constituição Federal (art. 225) como na Constituição Estadual (art. 193), deve preponderar sobre aqueles relacionados ao labor, à economia ou à propriedade, porque o bem supremo de qualquer criatura é a vida.
O conflito constitucional de normas, no caso dos animais submetidos às agruras do circo, é apenas aparente, porque um dispositivo que se opõe àquilo que mais angustia qualquer ser vivo - a dor do cativeiro e da vida antinatural - jamais poderia ser esmagado por interesses econômicos e privados, relacionados a uma pseuda função recreativa da fauna. Como bem sintetizou a magistrada Teresa Ramos Marques, relatora de um Acórdão que julgou procedente ação do Ministério Público visando à não-utilização de instrumentos torturantes em animais de rodeio, "não se desfaz a crueldade por expressa disposição de lei" (Apelação Cível n. 168.456-5/5-00, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo).
Embora a empresa requerida tenha demonstrado sua regularidade junto ao IBAMA e também do ponto de vista veterinário, isso não afasta a motivação da presente ação pública ambiental, porque o cerne da questão ora discutida não se restringe a seus aspectos formais ou médicos. Como já dissemos, a promotoria não está afirmando que os animais da companhia LE CIRQUE sofrem maus tratos e/ou ferimentos físicos. Está dizendo que, usados da forma como o são, sofrem flagrantes ABUSOS. Se a lei ambiental é clara em tipificar, no delito que define situações de crueldade para com animais (art. 32 da Lei 9.605/98), quatro verbos distintos: mutilar, ferir, maltratar e abusar, o legislador paulista que editou a Lei 11.977/05 foi mais longe em relação uso de animais em circo: proibiu-os expressamente no artigo 21 (que se encontra em plena vigência).
Sobre o alcance da expressão abuso, o atestado veterinário se cala. Sobre isso o IBAMA também não se manifesta. A análise comportamental e etológica de um animal submetido a uma tarefa induzida demonstra que a atividade circense é abusiva em relação aos bichos, sejam eles silvestres, exóticos, domésticos ou domesticados. É que a natureza dos bichos silvestres e exóticos não se coaduna à vida em cativeiro. Como sustentar que animais mantidos nessas condições, mantidos em espaços confinados e longe de seu habitat - geográfico e climático -, submetidos a funções anômalas à sua natureza, possam desfrutar de bem-estar?
Mesmo que a companhia LE CIRQUE tenha atendido às exigências técnicas do IBAMA, ou que tente demonstrar - mediante a juntada de pareceres ou atestados veterinários - que seus animais estejam bem de saúde e sem quaisquer lesões físicas, isso não afasta a motivação precípua desta ação. Afinal, o cerne da questão ora discutida não se esgota no aval administrativo, tampouco se limita às conclusões veterinárias superficiais, projetando-se muito além disso, a ponto de alcançar aspectos de natureza biológica, psíquica e comportamental dos animais, com implicações de ordem cultural e filosófica, além do alcance jurídico do conceito de abuso e crueldade. Assume o tema, conseqüentemente, um interesse JURÍDICO relevante, porque os atos de abuso para com animais também foram considerados pelo legislador como crime ambiental.
Circo com animais, embora há quem diga constituir uma tradição, não é cultura. Trata-se, na realidade, de uma inequívoca demonstração de violência para com criaturas subjugadas, que não podem fugir nem se defender. O artigo 215 da Constituição Federal, que assegura a todos o direito à cultura - repita-se -, não prevalece diante da norma do artigo 225 § 1o, VII, em que o próprio Poder Público recebeu a incumbência de proteger a fauna, vedando que animais sejam submetidos à crueldade. Inexiste conflito de normas. O direito à vida digna e ao bem estar de um ser senciente não pode sucumbir diante de um mau costume, tampouco compactuar com a violência que recai sobre os animais escravizados em circos.
Vale lembrar, a propósito, que o Supremo Tribunal Federal, ao proibir a famigerada farra do boi, reconheceu sua insconstitucionalidade em face do preceito protecionista dos animais proclamado pelo artigo 225 § 1o, VII, da Constituição Federal. O ministro Francisco Rezek, relator dessa histórica decisão, assim se pronunciou: "Não posso ver como juridicamente correta a idéia de que em prática dessa natureza a Constituição não é alvejada. Não há aqui uma manifestação cultural, com abusos avulsos; há uma prática abertamente violenta e cruel para com os animais, e a Constituição não deseja isso" (Recurso Extraordinário nº 153.531/8/SC; RT nº 753/101).
De fato, o mandamento magno acima referido não se limitou em garantir a variedade das espécies ou a função ecológica da fauna. Adentrou no campo da moral. Ao impor expressa vedação à crueldade para com os animais, como que admitindo a prática da maldade e do sadismo humano sobre outras criaturas, nosso legislador constitucional admitiu a possibilidade de o animal ser considerado sob a perspectiva ética e, portanto, sujeito jurídico passível de tutela mediante representação processual adequada (substituído, no caso, pelo Ministério Público, a quem incumbe a proteção jurídica dos animais).
Aqui na comarca de São José dos Campos, a propósito, o culto magistrado Luis Maurício Sodré de Oliveira, da 3ª. Vara Cível, deferiu nos autos da Ação Civil Pública n. 585/03 a concessão de medida liminar para impedir o uso de animais em espetáculo circense, demonstrando com essa decisão singular todo o seu espírito elevado e compassivo diante do sofrimento de criaturas oprimidas. Naquele mesmo ano de 2003 outro juiz sensato, Marcius Geraldo Porto de Oliveira, ao apreciar pedido de liminar formulado nos autos na Ação Civil Pública n. 1200/03, da 6ª. Vara Cível, deferiu-a sob o fundamento de que a alfabetização ecológica e ética e dever do poder público e a repressão aos abusos e crueldades praticados contra animais constituem medida amparável pela ação civil pública; como se sabe, todos os seres vivos da Terra têm mente e, submetidos a atos de crueldade, sujeitam-se ao sofrimento.
Ainda sobre o tema, interessante evocar o douto ensinamento de Antonio Herman Vasconcellos e Benjamin, mestre em Direito Ambiental: "Nos últimos anos vem ganhando força a tese de que um dos objetivos do Direito Ambiental é a proteção da biodiversidade (fauna, flora, ecossistemas), sob uma diferente perspectiva: a natureza como titular de valor jurídico próprio (...) O reconhecimento de direito aos animais - ou mesmo à natureza - não leva ao resultado absurdo de propor que seres humanos e animais tenham os mesmos ou equivalentes direitos..." (in "A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou nada disso". São Paulo, edição da Escola Superior do Ministério Público, 2001). O que se espera dos homens, enfim, é uma "mudança de paradigma na dogmática jurídica", devolvendo-se aos animais o direito que se lhes tiraram pela força.
Importa dizer, aliás, que a postura complacente em relação à vida e à dignidade das criaturas não se esgota em determinada corrente de pensamento, tampouco se restringe a definições conceituais relacionadas a essa ou aquela forma de agir. O animal merece consideração pelo que é, pelo caráter ímpar de sua existência, pelo fato de, simplesmente, estar no mundo. Aqueles que sustentam a visão antropocêntrica do direito constitucional, que vêem a pessoa humana como única destinatária das normas legais, que vinculam o respeito à vida em função do bem-estar da espécie dominante, que defendem a função recretiva ou cultural da fauna e que consideram os animais ora coisas ora como bens ambientais, afastando sua realidade sensível, rendem - deste modo - uma infeliz homenagem à intolerância, à insensatez e ao egoísmo.
A proposta de um circo sem animais, que encontra boa aceitação entre as crianças, vem ganhando adeptos no mundo inteiro. A respeito dessa constatação Silvana Castignone, professora de Filosofia de Direito na Universidade de Gênova, sustenta que os circos podem ser espetáculos muito bonitos, desde que se atenham aos seus próprios artistas, aos seus palhaços, aos seus exercícios de acrobacia, agilidade e destreza, livrando os animais de constrangimentos desnecessários, mesmo a simples exibição passiva. Afinal, não se mostra nada pedagógico mostrar animais aprisionados que se exibem, resignados, perante uma platéia ávida de emoções diferentes. Melhor a imagem televisiva ou fotográfica de um bicho silvestre ou exótico livre em seu legitimo habitat a apresentá-lo desprovido do que ele possui de mais belo.
Propõe essa ilustre jurista italiana, a exemplo de algumas entidades de proteção animal de seu País, interessantes sugestões para o problema: 1) proibição do uso de animais em espetáculos; 2) incentivo aos circos que deixarem de utilizar animais nas exibições; 3) recenseamento dos animais presentes nos espetáculos circenses e sua transferência para centros de reabilitação à vida selvagem ou em áreas de acolhimento. A idéia de um circo sem animais, adotada por diversas companhias da Austrália, do Canadá e dos EUA, já inspirou vários seguidores aqui no Brasil, conforme exemplos do Circo Spacial, do Circo Popular, do Circo Trapézio, do Circo Voz, da companhia Intrépida Trupe, do Circo da Alegria, dentre outros (documentação anexa).
Leis proibitivas de circos com animais, aliás, vêm surgindo em diversas cidades brasileiras, o que acena para uma mudança de mentalidade.
No município gaúcho de São Leopoldo foi aprovada, em 05 de abril de 2002, uma lei proibindo a estadia de espetáculos circenses, teatrais e similares que se utilizem de animais silvestres ou domesticados, nativos ou exóticos, em suas apresentações (Lei municipal n. 5.087/02).
Em Brotas, interior paulista, dispositivo semelhante foi inserido na recente legislação que dispõe sobre a expedição de alvará para espetáculos públicos, constando de seu artigo 3o que "os animais utilizados nos espetáculos públicos deverão ter sua dignidade corporal e psicológica respeitadas, sendo vedado submetê-los a qualquer atividade não condizente com seu comportamento e características naturais, bem como expô-los a maus tratos, ou mantê-los em condições precárias de higiene" (Lei n. 1.773/01).
Mais recentemente, em Campinas, foi aprovada a Lei Municipal n. 11.492/03, cujo artigo 1o dispõe: "Fica proibida a utilização de animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou não, em espetáculos circenses ou similares realizados no município de Campinas".
No Estado de São Paulo, torna-se a dizer, o artigo 21 do recente Código de Proteção aos Animais (Lei n. 11.977/05) VEDA A UTILIZAÇÃO DE ANIMAIS EM CIRCOS, o que demonstra a ilegalidade na conduta da empresa ora requerida.
O uso de animais em circos não é somente uma questão jurídica passível de questionamento mediante ação civil pública. Ela também envolve aspectos etológicos, culturais, pedagógicos e sobretudo filosóficos. Necessário convencer as pessoas de que circo com animais não é sinônimo de alegria, porque sua apologia da dominação corrompe a pureza infantil. É preciso coragem, enfim, para mostrar a dolorosa verdade dos picadeiros, afastando o véu que encobre a miserável condição dos animais que nele atuam.
DO PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA
Um dos princípios fundamentais do Direito Ambiental é o da prevenção, na medida em que a atuação eficaz é aquela que se faz presente no momento anterior à consumação do dano. Por isso é que se mostra necessária, desde já, a medida acautelatória visando a salvaguardar desses abusos os animais (elefantes, macacos, girafas, camelo, rinoceronte, hipopótamo, zebra, dentre outros) que a requerida pretende exibir em suas apresentações na temporada joseense, de 14 de julho a 13 de agosto de 2006, com apresentações vespertinas e noturnas, especialmente aos sábados e domingos.
De rigor, para evitar o perecimento do direito - porque o circo possui caráter itinerante - a concessão de medida liminar capaz de livrar os animais da injusta opressão humana. A documentação que instrui esta peça, assim como a legislação em vigor, mostra a presença dos requisitos legais. A inequívoca verossimilhança da alegação advém da divulgação do evento e da plausibilidade de sua realização. Ademais, o fundamento do pedido é extremamente relevante e, segundo as provas documentais juntadas com a inicial, atestam a plausibilidade da ocorrência de crueldade para com os animais, o que contraria o artigo 225 § 1o VII, da Constituição Federal e o artigo 32 caput da Lei dos Crimes Ambientais. Assim sendo, requer-se, liminarmente, seja VEDADA à requerida a utilização ou a exibição de quaisquer animais no espetáculo circense em questão, sob pena de multa diária no valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), nos termos do artigo 461 § 4o do Código de Processo Civil, sem prejuízo das providências cabíveis quanto ao crime de abuso e maus tratos contra animais (art. 32 da Lei n. 9.605/98).
Para que se possa viabilizar o efetivo cumprimento da medida cautelar requer a Promotoria designação de um Oficial de Justiça para comparecer pessoalmente ao local do evento e, assim, zelar pela fiel observância da ordem judicial, requisitando-se o concurso da Polícia Militar Ambiental com o mesmo propósito.
De rigor, ainda, que se oficie à Prefeitura Municipal dando ciência da liminar, a fim de que o alvará de funcionamento concedido ao representante da companhia LE CIRQUE, seja - no que se refere apenas à permissão para o uso de animais nos espetáculos - devidamente cassado.
Quanto aos demais atrativos do circo - balés, equilibristas, palhaços, mágicos, trapezistas, malabaristas e números musicais - nada temos que opor, muito pelo contrário, porque atividades que se realizam sem a utilização de animais oprimidos.

DO PEDIDO PRINCIPAL

Diante de todo e exposto e da documentação inclusa, que se torna parte integrante desta peça inaugural, propõe o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO a presente ação, com fulcro na Lei n° 7.347/85, para que a empresa "AMALIA GRISELDA RIOS DE STEVANOVICH E FILHOS LTDA", responsável pela companhia LE CIRQUE, seja condenada à :
OBRIGAÇÃO DE NÃO-FAZER:
- ABSTER-SE DE UTILIZAR OU EXIBIR ANIMAIS NOS ESPETÁCULOS - SHOWS, PERFORMANCES E DEMONSTRAÇÕES DE DESTREZA EM QUAISQUER CONDIÇÕES OU CIRCUNSTÂNCIAS, SEJA DURANTE A TEMPORADA DE 2006 (a partir de 14 de julho), SEJA EM DATAS FUTURAS;
- ABSTER-SE DE EXIBIR ANIMAIS ENJAULADOS OU ACORRENTADOS, COMO PROPAGANDA, DENTRO OU FORA DO LOCAL EM QUE ESTIVER INSTALADO O CIRCO.
FIXAÇÃO DE MULTA DIÁRIA:
Em caso de descumprimento das obrigações estipuladas nos tópicos anteriores, a requerida ficará sujeita ao pagamento de uma prestação pecuniária equivalente a R$ 30.000,00 (trinta mil reais) por dia (com correção monetária pelos índices oficiais e observados o disposto nos artigos 11 da Lei 7.347/85 e 632, 642 e 643 do Código de Processo Civil), sem prejuízo das medidas administrativas visando à eventual interdição ou ao fechamento do estabelecimento comercial ora requerido.
Diante de todo o exposto requer o Autor a citação da ré - nos termos do artigo 172, § 2°, do Código de Processo Civil - para contestar a presente ação civil pública, sob pena de revelia e confissão, isentando-se o Ministério Público do pagamento de custas, emolumentos e outros encargos, à vista do que dispõe o artigo 18 da Lei n° 7.347/1985 e o artigo 87 do Código de Defesa do Consumidor, assegurada a realização de suas intimações processuais na forma do artigo 236, § 2°, do CPC.
Protestando comprovar o alegado por todos os meios probatórios legalmente admitidos, como oitiva de testemunhas, inspeção judicial, juntada de outros artigos, pareceres e documentos.
Dá-se à causa, para efeitos fiscais, o valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais).
Termos em que,
P. Deferimento.
São José dos Campos, 13 de julho de 2006.
Laerte Fernando Levai Larissa Crescini Albernaz
Promotor de Justiça Promotora de Justiça
Não houve a concessão da medida liminar porque a juíza entendeu que inexistia prova inequívoca de crueldade no tratamento dos animais, afirmando ela, em seu despacho, que há "métodos de adestramento de animais que não se utilizam de crueldade e sim, muitas vezes, de método de recompensa, além do que todas as exigências formais para o regular funcionamento do circo foram obedecidas inclusive expedição de alvará, declaração do IBAMA que não detectou nenhum indício de maus tratos aos animais, declaração do veterinário responsável pelos animais de propriedade do circo".
A douta magistrada não se apercebeu, todavia, que o pedido do Ministério Público não estava fundamentado na tese de maus tratos, e sim em abuso aos animais. Afinal, em termos gramaticais, abuso significa uso despropositado ou excessivo, qual seja, o mau uso ou o uso cruel, aquele que é capaz de subjugar ou forçar uma criatura sensível a realizar tarefas que lhe contrariam a própria natureza. Afora isso, segundo os promotores de justiça autores da ação, não se deve compactuar com o entendimento preconceituoso de que a fauna possui uma finalidade recreativa, como se os animais estivessem no mundo apenas para servir aos homens. Ora, se existe abuso, existe também a violência que gera crueldade, independentemente dos órgãos administrativos ou governamentais atestarem ausência de lesão física ou vestígios de maus tratos nos animais.
Desta forma, sem a esperada concessão da liminar proibitiva, a temporada 2006 do LE CIRQUE transcorreu normalmente em São José dos Campos, seguindo o processo seu curso normal com a apresentação de CONTESTAÇÃO pelo I. Advogado da empresa circense. Nesta peça processual, apresentada aos 31 de agosto de 2006, referido causídico alegou, em preliminar, que nenhuma razão assistia ao requerente, porque o ponto incontroverso é a total ausência de maus tratos aos animais da requerida, que atendeu a todas as exigências do Município e dos demais órgãos administrativos. Disse, ainda, que o artigo 21 da Lei Estadual 11.977/05 é inconstitucional porque a atividade circense não se mostra ilegal e nem criminosa. Vedar uma atividade lícita - prosseguiu ele em seu raciocínio - fere o princípio da isonomia e os próprios direitos individuais das pessoas. Também não se pode simplesmente banir as profissões de amestrador e de domador, porque elas são regulamentadas por lei. O Estado, continua o Defensor, não deveria invadir matéria de competência exclusiva legislativa da União, tampouco vedar profissões lícitas. Isso sem falar que o direito de propriedade garante a permanência dos animais em poder do circo, sendo inconcebível que uma lei estadual disponha em sentido diverso, concluiu.
No mérito, alegou o Advogado da empresa requerida que a tese do Ministério Público sustentada na mencionada ação civil pública lança-se "à beira do ridículo", tanto que, se for adotado o seu critério, "estaríamos todos obrigados a discutir os ´direitos humanos´ das gramíneas, das árvores frutíferas, dos peixes, dos répteis e assim por diante. Tal ‘ideário' (e não ideal) jamais vinculará as inúmeras formas de interação do homem com os animais, neste país (como os exemplos expostos) quanto no mundo, pois realmente é impossível crer que os esquimós deverão ‘soltar' suas renas ou ‘abrir mão' de seus cães de transporte, na mesma medida em que os caçadores do interior da Ásia jamais deixaram de usar seus falcões nas caçadas, como também é costume de algumas tribos que vivem nas fronteiras de Massai Mara (continente africano) treinar guepardos para caçadas, e assim por diante". Ponderou o advogado, ainda, que "a atividade circense está para ser aprovada no Brasil por meio de Lei Federal, cujo texto foi votado à unanimidade pelos Senadores da República". Requereu a defesa, enfim, fosse julgado, em caráter incidental e antes da análise de mérito, a inconstitucionalidade do artigo 21 da Lei estadual 11.977/05, julgando-se a ação totalmente improcedente com a condenação do Ministério Público ao pagamento de custas processuais e demais emolumentos legais.
A RÉPLICA apresentada pela Promotoria rebateu todos os argumentos e também as críticas que sofreu na contestação defensiva, conforme pode se conferir na peça processual abaixo transcrita:
Processo n. 1071/06 - AÇÃO CIVIL PÚBLICA
6ª. Vara Cível de São José dos Campos
RÉPLICA DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA
MM. JUÍZA,
A companhia circense LE CIRQUE, representada por AMÁLIA GRISELDA RIOS DE STEVANOVICH E FILHOS LTDA ME, apresentou CONTESTAÇÃO à presente Ação Civil Pública Ambiental (fls. 97/129), pleiteando, de forma prejudicial, a declaração incidental da inconstitucionalidade do artigo 21 da Lei Estadual 11.977/2005 e, no mérito, a improcedência da ação, afastada a pretensão ministerial de proibir a Requerida de utilizar ou exibir seus animais nos espetáculos públicos que promove, em face da inexistência de abusos ou crueldade para com eles.
Juntou-se, na contestação, vários documentos comprobatórios da regularidade formal da referida empresa circense, que obteve Alvará municipal de funcionamento, vistoria do Corpo de Bombeiros, autorização do Ibama, laudos Veterinários favoráveis aos animais e garantia de qualidade Sanitária em suas dependências (fls. 147/156).
O ilustre advogado da companhia LE CIRQUE, depois de afirmar que a Promotoria de Justiça deturpou a milenar história circense ao exagerar em sua narrativa dramática, disse que a ausência de maus tratos aos animais da Requerida é um ponto incontroverso no processo. Em seguida pleiteia, à guisa de prejudicial, a declaração da inconstitucionalidade do artigo 21 da Lei 11.977/2005 sob o fundamento de que tal dispositivo cerceia uma prática legal, legítima e sobretudo cultural, afrontando o princípio da isonomia e o dispositivo constitucional que garante o exercício de atividade lícita.
Não bastasse isso o combativo Causídico diz que o Estado não pode legislar sobre matéria de competência privativa da União (organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício das profissões), além do que os animais são bens de domínio de seus proprietários, nos termos dos artigos 1228 e 1232 do Código Civil. No seu entender, o artigo 21 do Código Estadual de Proteção aos Animais também viola o princípio da proporcionalidade, merecendo também por isso ser declarado inconstitucional.
A partir daí as críticas defensivas assumem natureza ideológica. Após atacar, ironicamente, a postura assumida pelo Ministério Público em defesa dos animais, o nobre Defensor passa a ser valer de um discurso antropocêntrico para justificar a servidão animal diante do ser humano e, amparado no texto de um projeto de lei federal que assegura o emprego de animais silvestres e exóticos em circos, insiste em afirmar que as atividades circenses com animais constituem legítima manifestação da cultura brasileira e mundial.
Permito-me, em meio à réplica ora oferecida, tecer alguns comentários filosóficos imprescindíveis à compreensão do tema debatido, que envolve não apenas uma questão jurídica, mas sobretudo ÉTICA.
O perverso modelo antropocêntrico
Apesar de a Constituição Federal brasileira ser contrária à violência para com os animais, preconizando a ampla proteção da fauna, o que ocorre na prática é justamente o contrário. Nosso sistema jurídico, permissivo de condutas cruéis, admite, aceita e muitas vezes até estimula as atrocidades cometidas pela espécie que se diz racional e inteligente. Basta abrir os olhos para a miséria das ruas ou para a perversa realidade rural, na qual animais são maltratados e explorados até o limite de suas forças. Basta ver o que acontece sob o véu dos espetáculos públicos, nas fazendas, nas arenas, nas jaulas e nos picadeiros. Basta olhar o drama dos animais submetidos às agruras da criação industrial, aos horrores dos matadouros e às terríveis experiências científicas, dentre outras situações em que se lhes impinge dor e sofrimento.
Cegos da razão e da sensibilidade, vivemos em um mundo repleto de insensatez. O ciclo da existência humana tantas vezes se limita à satisfação de vaidades pessoais, ambições econômicas e prazeres frívolos. Nessa espaço não há lugar para a compaixão. Sob o prisma antropocêntrico, a natureza e os animais deixam de ser um valor em si, transformando-se em meros recursos ambientais. Tal sistema, ao desconsiderar a singularidade de cada criatura e o caráter sagrado da vida, justifica a tutela da fauna conforme a serventia que os animais possa ter. Tratados, via de regra, como mercadoria, matéria-prima ou produto de consumo, os animais - do ponto de vista jurídico - têm negada sua natural condição de seres sensíveis. Isso precisa mudar. Não pode mais prevalecer o silêncio diante de tamanha opressão.
Com os animais utilizados em circo a situação não é diferente. Ainda que se possa assegurar que, do ponto de vista alimentar e de saúde, eles estejam bem cuidados, a questão de fundo é outra. Como já dissemos exaustivamente na inicial, o que se discute neste processo não é a ocorrência material dos maus-tratos, mas a conduta abusiva que se perfaz com a utilização servil reiterada de animais que nem sequer possui características domésticas, mas que se vêem obrigados a contrariar sua natureza intrínseca para cumprir as tarefas exigidas pelo adestrador. O abuso, previsto dentre os tipos penais do artigo 32 da Lei 9.605/98, tem um alcance bem maior do que possa parecer à primeira vista. Afinal, ele não se limita aos picadeiros ou aos treinos, mas envolve contínuas viagens pelas estradas de nosso país, tornando a vida dos animais "artistas" um contínuo sofrer. Não há como aceitar, com naturalidade, que elefantes, tigres, chimpanzés, rinocerontes ou camelos, por exemplo, possam experimentar sensações de "felicidade" ou "bem-estar" vivendo uma rotina que ofende a sua natureza intrínseca, considerado também o ponto de vista etológico e comportamental. É necessário, portanto, convencer as pessoas de que circo com animais escravizados não é sinônimo de alegria ou de pureza infantil. É preciso, enfim, mostrar a dolorosa verdade desses espetáculos, afastando o véu que encobre a miserável condição dos animais que neles atuam.
Há séculos que o homem, seja em função de seus interesses financeiros, comerciais, lúdicos ou gastronômicos, seja por egoísmo ou sadismo, compraz-se em perseguir, prender, torturar e matar as outras espécies. O testemunho da história mostra que a nossa relação com os animais tem sido marcada pela ganância, pelo fanatismo, pela superstição, pela ignorância e, pior ainda, pela total indiferença perante o destino das criaturas subjugadas. Para que se possa mudar esse triste estado de coisas, há que se incluir os animais na esfera das preocupações morais humanas, porque eles - ao contrário do que se pensa - também são sujeitos de direito. Não se trata de conceder direitos humanos aos animais, tampouco às outras formas de vida - como afirmou de modo irônico o I. Patrono da Requerida - mas a de ampliar o campo da nossa moralidade e reconhecer direitos àqueles que estão protegidos pela lei e que, apesar disso, vivem à margem da Justiça. A questão não é apenas jurídica, insisto, porque ela possui uma inegável viés filosófico. Faz-se urgente, pois, uma revisão do nosso tradicional modelo de ensino, buscando uma fórmula que nos permita respeitar a vida independentemente de onde ela se manifeste. Este caminho, sem dúvida, passa longe do antropocentrismo.
Justiça dos homens
Esse sistema filosófico que pôs o homem no centro do universo acabou atribuindo à espécie dominante - em nome da supremacia da razão - o poder de subjugar a natureza e os animais. Vale lembrar que a escolástica e a teologia medievais firmaram a postura antropocêntrica com base no preceito bíblico de que a Terra é o centro do mundo criado por Deus para usufruto do homem. Ao se curvar inicialmente perante os deuses do Olimpo e depois aos santos das Escrituras, assumindo ser "a medida de todas as coisas" - conforme a célebre fórmula de Protágoras - a espécie humana passou a dominar as demais criaturas vivas. Para o filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), cujos ensinamentos foram acolhidos e repassados por São Tomás de Aquino (354-430), a pirâmide natural da existência tem em sua base os vegetais, que existem para servir aos animais, enquanto estes, finalmente, servem ao homem. Trata-se do círculo vicioso da dominação, que deferiu à espécie tida como racional - especialmente no Ocidente - um poder ilimitado sobre tudo que a cerca.
É certo que a domesticação dos animais e seu uso pelo homem remonta a tempos longínquos. Nas sociedades primitivas a marca desse domínio ficou registrada nos desenhos rupestres simbolizando a caça de bisões, mamutes e renas, sendo que os mais remotos vestígios de sedentariedade humana coincidem com a sujeição de cães, carneiros, bodes, bois, porcos, cavalos, iaques, camelos e alguns tipos de aves. Séculos mais tarde, os filósofos da Escola de Atenas e a tradição judaico-cristã sacramentaram essa posição de superioridade humana em relação ao mundo natural. Finda a Idade Média, a era das grandes navegações e das conquistas territoriais permitiu aos países colonialistas consolidar não apenas a sanha de dominação sobre os povos vencidos, mas a matança indiscriminada de animais nativos visando a propósitos mercantis ou à satisfação da vaidade do caçador, simbolizada pelo cruel aprisionamento e subjugação dos bichos.
No que se refere ao aprisionamento de animais para fins de exibição ou provas de destreza, como já dissemos na inicial, trata-se de uma milenar crueldade. Isso ocorria nas olimpíadas gregas e nos anfiteatros do Império Romano. Com a era dos Descobrimentos a caça e a captura de bichos exóticos possibilitou a multiplicação das companhias mambembes e ciganas que, em solo europeu, passaram a exibir à platéia animais nunca antes vistos pelo homem. Isso sem falar nas espécies sobreviventes que, trazidas além-mar, serviam como troféus à nobreza decadente das nações imperialistas. Muitas delas acabaram negociadas com particulares que se compraziam em montar zooógicos ou exibi-las cativas, em condições deploráveis, de cidade em cidade. Os circos que atualmente ainda utilizam animais em seus espetáculos são herdeiros dessa cultura desvirtuada, em que os fins (suposta diversão e entretenimento do povo) justificam os meios (cruel subjugação de animais).
Nossa indiferença em relação à dor dos animais também contaminou a mentalidade científica. Imerso no paradigma mecanicista de Renê Descartes (1596-1650), que no século 17 propôs a famigerada teoria "animal máquina", o fisiologista Claude Bernard (1813-1978)) fez da vivissecção o método oficial de pesquisa médica. A partir deste momento a experimentação animal torna-se metodologia padrão, submetendo suas cobaias a tormentos inomináveis sob a cômoda justificativa de contribuir ao progresso da ciência. Com o advento da Revolução Industrial e os sistemas de produção em série, o capitalismo emergente agrava ainda mais a situação dos animais. Após a Segunda Guerra Mundial, o avanço da industrialização e as novas descobertas tecnológicas romperam de vez com o sistema tradicional de criação. O antigo modelo pastoril cedeu vez à perversa metodologia utilizada pela indústria do agronegócio, na qual os animais destinados ao consumo humano nascem por encomenda, vivem em sofrimento e morrem miseravelmente.
Importa dizer que a doutrina antropocêntrica, embora preponderante, contou com ilustres opositores ao longo da história. O pensador grego Pitágoras (565-495 a.C.), após conhecer os principais centros espirituais da Antigüidade (India, Egito e Babilônia), tornou-se adepto da meditação, da alimentação vegetariana e da compassividade, a ponto de adquirir animais cativos nos mercados para soltá-los na mata. Consta que ele fundou, nas colinas de Crotona, uma cidade regida pelo amor e não pelo Direito, utopia essa que acabou sendo impiedosamente destruída. Na Grécia Antiga, época dos filósofos naturalistas, acreditava-se na dinâmica das coisas, na evolução das espécies e na origem animal do homem. Segundo as concepções da Escola de Mileto, a vida é uma contínua transformação, uma luta entre contrários e sujeita às vicissitudes do tempo e do espaço. Tal corrente de pensamento, surgida cinco séculos antes da era cristã e bastante elevada do ponto de vista espiritual, inseria o ambiente em uma perspectiva cósmica. Interessante notar que essa pioneira manifestação filosófica continha pontos de contato com o chamado Direito Natural, cujos princípios - inspirados no bom sendo e na eqüidade - decorrem das próprias leis da natureza.
A Filosofia no Direito
Se a Filosofia é uma invenção dos gregos, o Direito procede de Roma. Sob este aspecto, o sistema jurídico ocidental está quase todo ele sedimentado em bases antropocêntricas. Ainda que as leis positivas não devessem se afastar das leis naturais, o fato é que as ciências jurídicas nunca se importaram com o valor instrínseco da natureza ou com a extensão de direitos a seres não-humanos. Em meio a tal contexto, os animais acabaram sendo inseridos no regime privatista perante o qual a noção do Direito alcança somente os homens em sociedade, transformando o entorno em res (coisas). Assim, sob o mesmo regime jurídico conferido aos objetos inanimados ou à propriedade privada, a servidão animal foi legitimada pelo Direito. O conceito do justo, porém, nem sempre está compreendido na noção do Direito, cujas leis - surgidas ao sabor das circunstâncias históricas e sujeitas a múltiplos interesses políticos - podem vigorar em descompasso ao princípio da moralidade, que deveria inspirá-las.
Como afirma o professor Nelci Silvério de Oliveira, a Justiça, como virtude moral, não deve ser interpretada apenas no sentido jurídico propriamente dito ou em termos quantitativos ( "dar a cada um o que é seu"), mas o de um caminho à solidariedade e aos amor entre todas as criaturas: "Na verdade, o Direito sequer é um bem, é um mal necessário, que atua onde falha a Moral (...) E a moral é infinitamente superior ao Direito" (in ‘Curso de Filosofia do Direito', p. 136). Ainda que os dois conceitos - Direito e Moral - obedeçam, em tese, ao comando da Ética, somente conjugados entre si é que podem atingir a ordem jurídica verdadeiramente justa. O jurista Hans Kelsen, no clássico "Teoria Pura do Direito" , não considerava nenhum absurdo que os animais fossem considerados sujeitos de direito, porque em seu entender a relação jurídica não se dá entre o sujeito do dever e o sujeito de direito, mas entre o próprio dever jurídico e o direito reflexo que lhe corresponde. Para o mestre de Viena, portanto, o direito subjetivo nada mais é do que um reflexo de um dever jurídico, uma vez que a relação jurídica é uma relação entre normas (obra cit., 1987, p. 180).
Não é fácil, porém, convencer as pessoas de uma verdade tão simples. No curso da história alguns pensadores ousaram desafiar o sistema tradicional vigente para afirmar que os animais também possuem direitos. No século II o pensador romano Celso já dizia que a natureza existe tanto para os animais quanto para os homens. Para David Hume (1711-1776), "Nenhuma verdade me parece mais evidente que a de que os animais são dotados de pensamento e razão, assim como os homens. Os argumentos neste caso são tão óbvios que não escapam nem aos mais estúpido e ignorantes." (in ‘Tratado sobre a natureza humana", p. 209. Há mais de duzentos anos outro filósofo inglês, Jeremy Benthan (1748-1832), argumentava magistralmente em favor dos direitos dos animais: "Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos dos quais jamais poderiam ter sido privados, a não ser pela mão da tirania (...) A questão não é saber se os animais são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas se são passíveis de sofrimento." (in ‘The Principles of Morals and Legislation, cap. XVII, I, nota ao par. 4). Já o pensador alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) escreveu que a piedade, princípio de toda a moralidade, não depende de idéias preconcebidas, de religiões, de dogmas, de mitos, de educação ou da cultura, para colocar os animais sob o seu manto protetor: "Insistir na suposta inexistência de direito dos animais, como se nossa conduta para com eles não tivesse importância moral, porque deveres humanos em relação aos animais inexistem, é agir de modo preconceituoso e com uma ignorância revoltante" (in ‘Dores do Mundo', p. 124).
Na segunda quadra do século passado o professor Cesare Goretti (1886-1952), que lecionava Filosofia do Direito na Universidade de Ferrara, Itália, observou que os animais, quando domesticados, participam do ordenamento jurídico humano, surgindo daí nosso dever legal e moral, principalmente, de não tratá-los com brutalidade: "Se não podemos negar a eles um princípio de moralidade (companheirismo, gratidão, amizade), que razão temos em recusar sua participação em nossa ordem jurídica, que é apenas um esfera da moral?" (in ‘L´animale quale soggeto di diritto", Rivista di Filosofia, n. 19, Itália).Esse primoroso ensaio, ao desvincular os animais da perspectiva jurídica privada, teve o mérito de rebater o clássico conceito de que eles são objetos passíveis de uso, gozo e fruição, reconhecendo-os como detentores de uma capacidade jurídica sui generis. Ao questionar, mediante profunda argumentação filosófica, por que o animal - como ser sensível que é - permanece relegado à condição meramente passivo da relação jurídica, o professor Goretti projeta novas luzes sobre o tema relacionado ao estatuto ético dos animais, concluindo que o homem possui, a um só tempo, dever legal e moral sobre eles.
É preciso lembrar ao nobre Advogado contestante, respeitosamente, que aqueles que sustentam a visão antropocêntrica do direito constitucional, que vêem o homem como único destinatário das normas legais, que acreditam ser a crueldade um termo jurídico indeterminado, que defendem a função recreativa da fauna e que põem o ser humano como usufrutuário da natureza, rendem assim uma infeliz homenagem à intolerância, ao egoísmo e à insensatez. Porque o Direito não deve ser interpretado como mero instrumento de controle social, que garante interesses particulares e que divide bens. Deve projetar-se além da perspectiva privada, buscando a retidão, a solidariedade e a virtude. Nesse contexto, o próprio conceito de educação ambiental merece uma interpretação mais profunda, livre do critério da utilidade que impregna as relações humanas. Em seu livro "Educação ou adestramento ambiental?", a professora Paula Brügger mostra que a transformação de uma realidade assume um caráter político, porque voltada para uma mudança de valores que privilegie a solidariedade e o respeito. Não se trata de menosprezar os deveres do homem em relação a seus próprios semelhantes, e sim reconhecer que a postura ética - em sua plenitude - supera a barreira das espécies.
Paradoxos jurídicos
O Brasil é um dos poucos países do mundo a vedar, na própria Constituição Federal, a prática de crueldade para com os animais. Consta de seu artigo 225 § 1o, inciso VII, que incumbe ao Poder Público "proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade", postura essa que inspirou o legislador ordinário ambiental a criminalizar, no artigo 32 caput da Lei 9.605/98, todo aquele que "praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos". A maioria das cartas estaduais, acompanhando aquele mandamento supremo, proíbe a submissão de animais a atos cruéis. Conclui-se, diante disso, que o nosso repertório legislativo é mais do que suficiente para, em tese, proteger os animais da maldade humana. O problema maior é o abismo jurídico que separa a teoria da prática. Se determinadas condutas humanas não forem questionadas perante o Poder Judiciário, dificilmente mudaremos o atual estado de coisas.
Convém ponderar que as leis de proteção aos animais firmaram-se apenas no século 20. No Brasil, especificamente, a vedação à crueldade preconizada no decreto federal 24.645/34, tornou-se contravenção penal (art. 64 da LCP) e, bem depois, crime ambiental (art. 32 da Lei 9.605/98), já com o respaldo constitucional de nossa atual Carta Política (art. 225 § 1o, VII). Não obstante tal repertório legislativo, a situação da chamada fauna doméstica ou domesticada, em plena era da globalização, é desoladora. Exceção feita aos animais de estimação que, na maioria das vezes, têm uma vida tranqüila e sem sobressaltos, assim como às espécies nativas que conseguem ficar longe da ação predatória humana, considerável parcela da fauna brasileira vive sob o signo do sofrer. Basta um olhar crítico sobre o que acontece nas fazendas de criação, nos laboratórios científicos, nos centros de controle de zoonoses e nas companhias de diversões públicas para concluir que a crueldade, quando justificada pelo uso do animal, acaba obtendo respaldo legal. Não seria exagero dizer que, no Brasil, em diversos setores (agronegócio, científico e sanitário) a crueldade se torna consentida, isto é, aceita pelo Poder Público como mal necessário. Isso para não falar daquela perfazida em eventos supostamente culturais e recreativos (rodeios, vaquejadas, circos, zoológicos, caça e pesca esportiva, etc), que não raras vezes contam com o beneplácito da próprio Poder Público.
É triste constatar que o uso econômico do animal e a chamada finalidade recreativa da fauna, embora possam contrariar a moral e a ética, têm respaldo em diplomas permissivos de comportamentos cruéis, a exemplo do que se vê na lei do Abate Humanitário, na lei da Vivissecção, na lei dos Zoológicos, no Código de Caça e de Pesca, na lei da Jugulação Cruenta e na lei dos Rodeios. Nem sempre as pessoas entendem que acima de todas as leis ordinárias, sejam elas federais ou estaduais, vige a Carta da República, cujo artigo 225 §1o, VII, obriga o poder público a coibir a submissão de animais a atos de crueldade. Este, aliás, é o fundamento legal para a proteção dos animais no Brasil. Trata-se de um preceito que, longe de vincular a proteção à fauna apenas enquanto bem ambiental, estende sua tutela a todos os animais, indiscriminada e individualmente, sejam eles silvestres, nativos ou exóticos, domésticos ou domesticados, terrestres ou aquáticos, reconhecendo a capacidade de sentir e de sofrer de cada criatura viva. Como, então, desafiar um sistema jurídico capaz de legitimar a crueldade para com os animais?
Há que se dizer que, em termos legais, vigência não se confunde com eficácia. É que os aparentes conflitos de normas e as leis permissivas de comportamentos cruéis, diante de uma economia capitalista impregnada pelo estilo antropocêntrico de viver, acabam ‘legitimando' a exploração animal. Embora permitida pelo Direito, a milenar ação escravagista do homem sobre o animal será sempre, do ponto de vista filosófico, uma prática injusta, principalmente quando oprime, agride, tortura ou mata. A conveniência humana, ainda que justificada pelo prazer gastronômico, pela estética da vaidade, pelo divertimento público, pelas crenças religiosas e pela suposta verdade científica, acaba preponderando sobre o destino dos animais subjugados. Vale aqui lembrar, como exemplo de genocídio animal consentido, o que acontece diariamente nos matadouros e frigoríficos, nas granjas de produção industrial, nos centros de controle de zoonoses e nos laboratórios de experimentação científica. Também nos criadouros comerciais, nas fazendas de criação intensiva e nas áreas em que a caça amadora é permitida, os animais ali mantidos são previamente condenados à morte. Já a propalada função recreativa da fauna impinge sofrimento a milhares de outros animais, domésticos ou selvagens, utilizados em rodeios, vaquejadas, circos e zoológicos. Um cenário deprimente, em que o animal jamais é considerado por sua individualidade ou por sua capacidade de sofrer, mas em função daquilo que pode render - em termos monetários ou políticos - àqueles que os exploram.
Não é à toa que, para o direito civil, o animal é coisa ou semovente; no direito penal, objeto material; e, no direito ambiental, bem ou recurso natural. No jargão do agronegócio, bois e vacas perdem sua condição natural de seres sencientes para se tornarem rebanho, plantel, cabeças, peças ou matrizes; no circo, leões, macacos, tigres e ursos adestrados são protagonistas do triste espetáculo da dominação humana; nos depósitos municipais os cães recolhidos das ruas, mesmo sendo dóceis ou sadios, acabam sendo sacrificados em razão de seu risco potencial à saúde pública; nas mesas dos centros de pesquisa científica, coelhos, camundongos, rãs, cães e hamsters são considerados, todos eles, simples cobaias. E assim por diante, a dialética da opressão faz com que os animais permaneçam sempre curvados às vicissitudes históricas, culturais, políticas e econômicas dos povos, sofrendo violências atrozes e desnecessárias. A lei ambiental brasileira, tida como uma das mais avançadas do planeta, parece ignorar o destino cruel desses milhões de animais que perdem a vida nos matadouros, nos laboratórios e nos galpões de extermínio, que tanto sofrem nas fazendas de criação, nos picadeiros circenses e nas arenas públicas ou, então, que padecem em gaiolas ou em cubículos insalubres, para assim atender aos interesses do opressor. Existe uma barreira conceitual que impede aos homens de enxergar uma verdade cristalina. O sabor da carne, a ditadura da vaidade e os falsos mitos da saúde pública contribuem para erguer esses gigantescos muros invisíveis.
Da crueldade institucionalizada
Condicionar a crueldade à submissão dos animais ao sofrimento inútil ou desnecessário é, de certa forma, negar à natureza um valor em si, como se tudo o que existe no mundo gravitasse em função do interesse humano. Estar-se-ia, assim, separando o homem da natureza, para torná-lo espécie desfrutadora e consumidora do mundo natural. A noção de crueldade, nesse contexto, acaba se submetendo às regras do utilitarismo, de modo que a conduta cruenta somente se caracterizaria como tal se o homem assim o dispusesse. Embora algumas fórmulas e expressões ecológicas impregnadas de dubiedade - desenvolvimento sustentável, garantia da sadia qualidade de vida, manifestação da cultura do povo, atividade cultural e prática necessária ou socialmente consentida - possam, de certa forma, sustentar o discurso antropocêntrico dominante, sua tônica não resiste ao confronto filosófico. Segundo a professora Sônia T. Felipe, da Universidade Federal de Santa Catarina, "Ao dizermos que animais devem ficar excluídos de nosso horizonte moral, por não serem capazes de firmar ou de cumprir contratos, estamos apenas reduzindo o âmbito moral aos parâmetros do mercado" (discurso apresentado em mesa-redonda sobre o uso de animais, na Universidade Federal de Santa Catarina, em 18.06.1999).
Nosso Direito Ambiental, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não se limita a proteger a vida do animal em função dos chamados bons costumes, do equilíbrio ecológico ou da sadia qualidade de vida. A noção de crueldade, longe permanecer afeita apenas à saúde psíquica do homem, é universal e anterior ao direito positivo. Ações agressivas e dolorosas, longe de constituir simples conceitos abstratos, recaem sobre um corpo senciente. A dor é real, ainda que nosso sistema jurídico muitas vezes a desconsidere em relação aos animais. Ao dispor expressamente sobre a vedação à crueldade, o legislador pátrio erigiu um dispositivo de cunho moral que se volta, antes de tudo, ao bem-estar do próprio animal e, secundariamente, da coletividade. Apesar de sua acentuada feição antropocêntrica, a Constituição da República reconhece que os animais podem sofrer, abrindo margem para a interpretação biocêntrica do preceito que veda a crueldade.
Há, também, uma limitação ao princípio geral da atividade econômica previsto no art. 170, VI, da CF, que prega a observância da ética em toda atividade que envolver a exploração da natureza e dos animais. Outros princípios constitucionais informam a política brasileira de proteção à fauna, conforme ensinamentos da advogada ambientalista Vanice Teixeira Orlandi: a) da legalidade: enquanto é lícito ao particular fazer tudo o que a lei não veda, à Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza (art. 70 caput da CF), de modo que a matança de animais não nocivos à saúde ou à segurança social fere esse princípio; b) da moralidade: condenar à morte um animal saúdável, pelo fato dele não pertencer a ninguém, é o mesmo que admitir que sua vida só tem valor se, de alguma forma, servir ao interesse humano; c) da educação ambiental: o poder público deve ensinar as pessoas a respeitar o meio ambiente e os animais, conforme preconizado no art. 225 caput da CF); d) da precaução: os objetivos do Direito Ambiental também nas questões relacionadas aos animais, às vezes com medidas preventivas capazes de evitar sofrimentos e mortes. Essa missão incumbe ao Ministério Público - instituição devidamente credenciada, do ponto de vista histórico, legal e técnico, para exercer a tutela dos interesse difusos - substituindo aqueles não têm como se defender (princípio da representação).
O suposto conflito de normas legais (princípios econômicos x bem-estar animal, liberdade de religião x abate humanitário, meio ambiente natural x meio ambiente cultural, direito à pesquisa x recursos substitutivos, etc) é apenas aparente. A legislação brasileira - independentemente de seu pretenso contexto ecológico - protege os animais todos, colocando-os a salvo de maus tratos e crueldades, direito esse projetado no âmbito constitucional. Efetivar tal mandamento é uma questão de bom senso, porque, ao sopesar aqueles valores, o direito à vida e à integridade física não podem sucumbir diante de interesses comerciais, econômicos ou religiosos (princípio da proporcionalidade). Aceitar a vigência de determinadas normas jurídicas ou sanitárias que contrariem o preceito magno que veda a crueldade para com os animais significa compactuar com a injustiça. Afinal, o que se vê em meio à sociedade globalizada é um autêntico massacre consentido, em que a essência de determinadas leis relacionadas a animais acabou contaminada pela insana lógica capitalista perante a qual seres vivos transformam-se em carcaças, a Moral sucumbe e o Direito se torna injusto.
O papel do Ministério Público
É equivocada a afirmação feita pelo I. Defensor do LE CIRQUE no sentido de que os promotores de justiça que subscrevem a inicial divagaram na esfera especulativa, afastando-se da questão jurídica. Isso porque na verdade as duas ciências - o Direito e a Filosofia - estão interligadas, não se podendo tratar com profundidade de um tema relacionado à utilização pública de animais cativos cativos sem adentrar na finalidade ética concernente à própria teoria da justiça. Ridicularizar o Ministério Público pelo fato de a Instituição preocupar-se com a defesa de criaturas outras que não aquelas pertencentes à espécie humana é assumir uma visão estreita e preconceituosa em relação à natureza. Dizer que a Promotoria lançou-se em uma pretensão processual esdrúxula e merecedora de apenamento com a litigância de má-fé é fazer tabula rasa da lei que colocou, desde 1934, o Ministério Público na condição de representante dos animais em juízo e, mais recentemente, pela Carta Política de 1988, como legítimo defensor do meio ambiente.
Quem renega o valor do trabalho científico de Charles Darwin, autêntico "divisor de águas" no pensamento ocidental e que deu origem aos estudos na neurociência, rompendo com a visão cartesiana de que os animais eram simples máquinas inanimadas a serviço do homem, certamente não compreenderá as lições de neuroanatomia animal desenvolvidas pela especialista Irvênia Luiza de Santis Prada, Professora Emérita da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, no sentido de que uma das diferenças entre os homens e os animais mamíferos reside no córtex cerebral mais desenvolvido naqueles, o que não afasta o reconhecimento de que ambos têm, em comum, a parte frontal superior, relacionada à expressão de comportamento e emoções. Justamente isso que Charles Darwin observara, desde 1872, ao escrever seu derradeiro livro, "A expressão das emoções nos homens e nos animais".
Há que se dizer, a propósito, que na década de 1990 um grupo de cientistas começou a defender abertamente a extensão dos direitos humanos para os grandes primatas, dando início ao movimento denominado "Projeto Grandes Primatas" (The Great Ape Project), liderado pelos professores Peter Singer e Paola Cavalieri, e contando com o apoio de primatólogos como Jane Goodall, etólogos como Richard Darwins e intelectuais como Edgar Morin. Esse projeto parte do seguinte ponto de vista: humanos e primatas, originários de uma espécie comum, dividiram-se em espécies diferentes há mais ou menos 5 milhões de anos, com uma parte evoluindo para os atuais chimpanzés e bonobos e outra para os primatas bípedes eretos, dos quais descendem o Homo Australopitecus, o Homo Ardipithecus e o Homo Paranthropus. A tese darwiniana da descendência humana do macaco, ao menos do ponto de vista conceitual/terminológico, não merece ser criticada em face dos recentes estudos de DNA comparativo pelo método da biologia molecular relacionada à taxonomia.Segundo Richard Dawkins, se nossa mãe segurar na mão de nossa avó e assim por diante, em menos de quinhentos quilômetros encontrarremos uma ancestral comum com os chipanzés, e isto em termos evolutivos não é um tempo muito longo (in "Gaps in the Mind", 1993, p. 85). A questão essencial, entretanto, é levantada pelo promotor de Justiça Heron José de Santana, de Salvador/BA, que ousou impetrar um habeas corpus em favor de uma chimpanzé injustamente aprisonada: por qual razão nós concedemos personalidade jurídica até mesmo a universalidades de bens, como a massa falida, e nos recusamos a concedê-la a seres que compartilham até 99,4% da nossa carga genética? Por que razão permitimos que chimpanzés, bonomos, gorilas e oangotangos vivam aprisionados em circos e zoológicos e, ao mesmo tempo, asseguramos direitos fundamentais para seres humanos capazes de cometer os mais abomináveis crimes contra a humanidade? (in "Revista de Direito Animal", 2006, p. 271).
Daí porque incumbe ao Ministério Público, como guardião do ambiente e curador dos animais, zelar pela fiel aplicação da norma protetora suprema, lutando para que nenhuma lei infraconstitucional legitime a crueldade, que nenhum princípio da ordem econômica justifique a barbárie, que nenhuma pesquisa científica se perfaça sem ética e que nenhum divertimento público ou dogma religioso possam advir de costumes desvirtuados ou de rituais sanguinolentos. Contra a injustiça, a hipocrisia social, as tradições cruentas e os subterfúgios jurídicos que permitem esse autêntico genocídio de seres inocentes, devem os promotores sempre agir. Os instrumentos legais da Ação Civil Pública e do Inquérito Civil, somados à possibilidade de firmar Termo de Ajustamento de Conduta ou de expedir Recomendação, surtem bons efeitos preventivos, reparatórios e pedagógicos. No âmbito penal, caso o fato já se tenha consumado, propostas de transação penal, suspensão processual ou prestação de serviços à coletividade, mediante atividades ressocializadoras e/ou educativas, podem contribuir para que a conscientização do infrator. O essencial, seja como for, é atribuir aos animais a condição de seres sensíveis, cujos interesses são representados em juízo pelo promotor de Justiça, mediante substutuição processual.
Ética sem fronteiras
O embate antropocentrismo x ecocentrismo não é uma questão neutra nem irrelevante, afirmam Édis Milaré e José de Ávila Aguiar ao demonstrar que a espécie humana não é mais a medida de todas as coisas, mas parte do mundo natural. Segundo eles, em primoroso ensaio sobre o tema, "O direito - em particular o direito ambiental - necessita construir novas pontes para alcançar a margem segura da realidade objetiva, ilustrada pelos saberes científicos (...) Por vezes é preciso coragem para mudar, abandonando o conforto da ‘ordem estabelecida'" (in ‘Antropocentrismo x Ecocentrismo na ciência jurídica, Revista de Direito Ambiental, n. 36). Se o positivismo jurídico nega ao ambiente um valor absoluto, como se a natureza fosse um mero palco para as ações humanas, essa tradicional concepção começa a mudar com o advento da corrente biocêntrica, que devolveu ao homem sua condição de simples espécie dentre outras tantas que integram a complexa ‘teia da vida". Não se trata de menosprezar a importância da vida humana, mas de estender o alcance da justiça àquelas criaturas que também têm o direito de viver sem sofrimento. Há, enfim, que se ‘descoisificar' a natureza, porque o ambiente não pode ser considerado apenas um conjunto de recursos submetidos à lei do mais forte.
Em 1972, época marcada pela Guerra Fria e por gritantes atentados ambientais, o mundo se mobilizou em torno da questão ecológica, transformando a célebre Conferência de Estocolmo em um verdadeiro divisor de águas em relação à postura humana com o entorno. Trinta e cinco anos depois o caos ambiental parece ressurgir das cinzas, pondo em xeque a economia, a política e as sociedades globalizadas. Basta dizer que apenas no último século o consumo de água aumentou 6 vezes, agravada pela incontida expansão agropecuária que acarreta em pouco tempo o esgotamento do solo e a perda da biodiversidade (1/4 da área cultivável do planeta é destinada ao agronegócio). A industrialização fabril contribuiu para o aumento da temperatura global, enquanto a pesca comercial aniquilou 90% a população de peixes oceânicos. O drama da seca já chegou à Amazônia, cujas florestas vêm sendo derrubadas a olhos vistos. Em meio à onda de queimadas, terremotos, desertificação, inundações e aquecimentos, que tanto assolaram o planeta no ano de 2005, surgem agora as pandemias que já atingem os animais das fazendas industriais e que põem em risco a própria incolumidade humana. O paradigma antropocêntrico precisa deixar de ser absoluto, caso contrário seremos cúmplices da grande tragédia ambiental que se anuncia.
Uma das formas para se obter transformações é retomar o conceito do direito natural, restabelecendo-se a visão sistêmica que nos permite interagir eticamente com o ambiente. Isso porque o mesmo sistema legal que ao longo dos séculos fez questão de distinguir pessoas e coisas, atribuindo aos homens a titularidade exclusiva dos direitos, afastou a natureza e os animais da esfera de nossas considerações morais. A febre consumista que tanto explora o animal, entretanto, não retira a sensibilidade dos oprimidos, ainda que a lei civil considere os animais domésticos e domesticados como semoventes, e a lei ambiental - no trato dos silvestres -, bens de uso comum do povo. Na realidade, o caminho para o abolicionismo animal não está nos discursos da ONU e da UNESCO, nem nos tratados e convenções internacionais, tampouco nas leis positivas que traduzem - clara ou dissimuladamente - intenções humanas egoístas. Depende, sim, de mudanças interiores.
O reconhecimento de que existe um direito dos animais, a par do direito dos homens, não se restringe a divagações de cunho abstrato ou sentimental. Ao contrário, é de uma evidência que salta aos olhos e se projeta no campo da razão. Mesmo que nosso ordenamento jurídico aparentemente defira apenas ao ser humano a capacidade de assumir direitos e deveres (no âmbito civil) e de figurar no pólo passivo da ação (no âmbito penal) - como se as pessoas, tão-somente elas, fossem capazes de integrar a relação processual na condição de sujeitos de direito - é possível identificar imperativos éticos que, além da perspectiva biocêntrica, se relacionam ao bem-estar dos animais. O citado mandamento do artigo 225 § 1o, VII, da Constituição Federal, por exemplo, não se limita a garantir a variedade das espécies ou a função ecológica da fauna. Adentrou no campo da moral. Ao impor expressa vedação à crueldade, permite considerar os animais como sujeitos de direito.
Conclui-se, nessa linha de raciocínio, que o discurso ético em favor dos animais decorre não apenas da dogmática inserida neste ou naquele dispositivo legal protetor, mas dos princípios morais que devem nortear as ações humanas. O direito dos animais envolve, a um só tempo, as teorias da natureza e os mesmos princípios de Justiça que se aplicam aos homens em sociedade, porque cada ser vivo possui singularidades que devem ser respeitadas. E o que representa uma lei repressiva senão a implícita confissão da própria torpeza do homem? Isso explica porque a Ética e a Moral, como atividades de reflexão, precisam estar sempre acima do Direito. A postura piedosa e compassiva perante a vida deve se somar aos deveres humanos relacionados ao respeito e à proteção dos animais, erigindo-se em uma única e relevante questão filosófica.
Ainda que seja perfeitamente possível trazer os animais à relação processual, sob a tutela do Ministério Público, a libertação para seu milenar sofrimento não se encontra apenas na seara jurídica. O Direito, por mais boa vontade que se possa ter em aplicá-lo, não conseguiria, por si só, modificar o sistema que tanto oprime essas criaturas. Ações piedosas individualizadas, protestos públicos e propositura de demandas judiciais, embora possam evitar crueldades ou punir infratores, serão sempre medidas paliativas. É preciso uma tomada de consciência capaz de ampliar o campo de visão humana para além dos limites do poder econômico, da mídia globalizada, dos índices do PIB, dos informes técnicos da OMS, dos discursos pseudo-ecológicos, das cartas de intenções proclamadas ao mundo e, porque não dizer, das próprias leis que regem a vida em sociedade. A excelência espiritual, que se adquire com uma pedagogia voltada aos sentimentos, talvez seja a última esperança para neutralizar as desilusões geradas por um mundo materialista e insano, em que os animais nascem, vivem e morrem em função da vontade humana.
Daí porque o único jeito de inventar um mundo novo é por uma educação que privilegie valores e princípios morais elevados. Algo que nos faça compreender, desde cedo, o caráter sagrado da existência. Mostrar às pessoas que a natureza e os animais também merecem ser protegidos pelo que eles são, como valor em si, não em vista do benefício que nos podem propiciar. As leis, por si só, não têm a capacidade de mudar as pessoas, mesmo porque o equilíbrio social preconizado pelo Direito vigora em meio a fragilidades e a incertezas. Somente a sincera retomada de valores, que depende de uma profunda conscientização humana, poderia livrar os animais de tantos padecimentos. Exatamente aquilo que propõe o educador Rubem Alves: "A sabedoria precisa de esquecimento. Esquecer-se é livrar-se dos jeitos de ser que se sedimentaram em nós, e que nos levam a crer que as coisas têm de ser do jeito que são (...). Por isso quero ensinar as crianças. Elas ainda têm os olhos encantados" (in "A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir", p. 51 e 66).
A idéia de circos sem animais, ao contrário do que imagina a Requerida, vem crescendo no mundo todo. Basta ver o belíssimo exemplo representado pelo Cirque du Soleil, que verdadeiramente encanta platéias sem submeter, subjugar ou mesmo exibir animais cativos. Esse novo modelo de divertimento, que dispensa a utilização de animais, repercute também no Brasil, conforme se depreende da legislação de alguns municípios que se mostraram contrários à idéia de que circos com animais seja cultura, inspirados no modelo de circo adotado pelo ator Marcos Frota. Na verdade, a relação de fls. 82/83 fala por si. É muito mais saudável às crianças ver bailarinas, equilibristas, palhaços, mágicos, trapezistas, malabaristas e músicos que se divertir à custa do sofrimento - nem sempre percebido - das demais espécies.
A questão tratada nestes autos, enfim, ultrapassa o campo jurídico. Não basta de um lado se insurgir contra um dispositivo de lei que se propõe a libertar os animais mediante argumentos de ordem constitucional e/ou civil quando, de outro lado, se estimula uma prática que deforma a natureza das coisas. Dizer que circo com animais representa uma legitima manifestação cultural, data maxima venia, é confessar a hipocrisia de nossas atitudes e sentimentos, como se o animal nada mais significasse do que um mero objeto de recreação, deleite ou mórbido prazer. Enquanto se continuar ensinando às crianças que os animais existem para servir ao homem e que, como seres inferiores, merecem ser utilizados ou escravizados, dificilmente essa situação mudará.
O filósofo norte-americano Tom Regan, cuja teoria ética em defesa dos animais considera-os como legítimos detentores de direito, enxergou - como ninguém - aquilo que os homens não querem ver: "Os animais não existem em função do homem... eles possuem uma existência e um valor próprios. Uma moral que não incorpore esta verdade é vazia. Um sistema jurídico que a exclua é cego".
Diante do exposto aguardo, respeitosamente, seja afastada a prejudicial que visa à declaração incidental do artigo 21 da Lei 11.977/05 e, reiterando os termos da peça inicial, a PROCEDENCIA da presente Ação Civil Pública, a fim de compelir a requerida às seguintes obrigações de não-fazer: a) abster-se de utilizar ou exibir animais nos espetáculos - shows, performances e demonstrações de destreza em quaisquer condições ou circunstâncias; b) abster-se de exibir animais enjaulados ou acorrentados, como propaganda, dentro ou fora do local em que estiver instalado o circo.
No que se refere à pretensão de condenar o Ministério Público ao pagamento de custas e emolumentos, recomenda-se ao I. Advogado da requerida a leitura do artigo 18 da Lei 7.347/85.
São José dos Campos, 26 de setembro de 2006.
Laerte Fernando Levai
Promotor de Justiça
Insurgindo-se veementemente contra esta manifestação da Promotoria, em documento anexado ao processo aos 27 de outubro do referido ano, o I. Advogado da empresa LE CIRQUE alegou, inicialmente, "que não irá responder às agressões lançadas no texto da Promotoria Pública", manifestando sua vontade de que ficasse registrado nos autos que "a ferocidade e a deselegância demonstradas em quase todas as páginas da Impugnação não passaram despercebidas e também não intimidaram a requerida ou este advogado". Concluiu sua peça dizendo que "escapa completamente ao entendimento da Requerida, de sua família, de seus empregados, deste procurador e de toda a população brasileira, como conceitos de ética e moral podem transformar pessoas simples e trabalhadoras em seres cruéis, mutiladores etc.? Apenas em função da manutenção de animais consigo? Animais esses que estão em perfeito estado de saúde, conforme laudo de profissionais competentes para tanto..."
E outros ataques ao trabalho dos promotores de São José dos Campos foram consignados em tal manifestação: "Embora a Requerida e todos seus familiares nutram o maior respeito pelo Ministério Público, não há como tergiversar que esta ação representa um abuso sem precedentes. A manipulação da realidade pelo Autor e a utilização completamente distorcida de conceitos como ética e moral não pode dar ensejo a pretensão esposada na Inicial". O requerimento final feito pelo Patrono da empresa requerida é incisivo: "Neste sentido se expõe e espera seja o Ministério Público do Estado de São Paulo apenado por litigância de má-fé, posto que o artigo 17 do Código de Processo Civil é claríssimo: Reputa-se litigante de má-fé aquele que: III- usar do processo para conseguir objetivo ilegal." (...). E conclui: "Por fim, inexistindo qualquer prova a ser produzida, eis que é incontroverso a ausência de maus tratos e abusos (ano menos no entendimento que os dicionários aplica, a estas palavras), requer a Vossa Excelência seja o feito julgado no estado em que se encontra, com o afastamento do artigo 21 da Lei 11.977/05 em virtude de suas claríssimas inconstitucionalidades e a conseqüente improcedência total da ação".
Aos 06 de novembro de 2006 os autos foram baixados ao MM Juiz de Direito designado para auxiliar na 6ª Vara Cível de São José dos Campos, o ilustre magistrado Gustavo Alexandre da Câmara Leal Belluzzo, que, em 28 de fevereiro de 2007, julgou procedente a ação civil pública, determinando que a ré se abstivesse do uso ou da exibição de animais em seus espetáculos, performance e demonstrações de destreza em quaisquer condições e circunstâncias durante suas temporadas, seja especificamente na comarca de São José dos Campos, seja também em todo território do Estado de São Paulo, sob pena de multa diária de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), sem prejuízo de adoção de medidas administrativas como a interdição ou o fechamento do estabelecimento em caso de descumprimento. A sentença também determinou à ré abster-se de exibir animais enjaulados ou acorrentados como propaganda, dentro ou fora do local em que estiver instalado o circo, estabelecendo a multa no valor acima referido em caso de descumprimento.
Vale a pena conhecer o inteiro teor dessa inédita SENTENÇA brasileira em favor dos animais:
VISTOS
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, qualificado nos autos, moveu ação civil pública contra AMALIA GRISELDA RIOS DE STEVANOVICH E FILHOS LTDA ME, alegando em síntese que o circo requerido, nome fantasia "Le Cirque", com temporada nesta urbe, insiste em manter animais em seus espetáculos, utilizando-se de elefantes, girafas, chimpanzés, um hipopótamo, um rinoceronte, uma zebra, um camelo, um babuíno, pôneis e cães, sendo que as práticas adotadas pelo requerido são incompatíveis com a natureza dos animais. Sustenta que a declaração do IBAMA em favor do circo não tem qualquer sustentabilidade quanto ao fato de que os animais não possuem indícios de maus tratos. Sustenta que a Lei protege os animais colocando-os a salvo dos mais tratos e da crueldade e sendo tutelados pelo Estado. Sustenta que pela Lei Estadual (Código de Proteção aos Animais do Estado de São Paulo) veda-se a apresentação ou utilização de animais em espetáculos circenses. Pretende que a ré abstenha-se de utilizar ou de exibir os animais nos espetáculos e que se abstenha de exibir animais enjaulados ou acorrentados, sob pena de multa. Com a inicial os documentos de fls.22/93. Citada a fls.96, a ré contestou a fls.97/129 batendo-se pela improcedência. Replica a fls.163/178. Manifestação pela requerida a fls.180/194. Regularizados, vieram os autos conclusos para sentença.
É o relatório. DECIDO.
Nada há nos autos a justificar a dilação probatória, razão pela qual profere-se julgamento antecipado, na forma do artigo 330, I, do Código de Processo Civil.
A ação é procedente.
Não há dúvidas de que a Constituição Federal de 1988 estabelece expressamente ser o "meio ambiente ecologicamente equilibrado" um direito de todos, impondo-se ao Poder Publico e à coletividade o dever inequívoco de defendê-lo e preservá-lo, evitando-se com que os animais sejam submetidos à qualquer forma de crueldade ou abusos.
Ademais, não é de hoje, mas desde 1934, que existe o Decreto 24.645/34, em plena vigência no ordenamento jurídico brasileiro, que determina que todos os animais do país sejam tutelados pelo Estado, caracterizando-se crime ambiental a prática de atos de abuso, maus-tratos, lesivos à integridade corporal ou mutilatórios de animais.
No Estado de São Paulo existe uma proteção maior aos animais, pois editada a Lei de Proteção aos Animais (nº 11.977/05) que veda expressamente a apresentação ou utilização de animais em espetáculos circenses, independentemente de existência de abusos ou outras formas de crueldade, a qual se encontra em plena vigência e nada tem de inconstitucional, pois está em consonância aos ditames constitucionais e com o próprio bom senso e razoabilidade.
Nota-se ainda que os animais de circo, observadas as condições em que vivem (se é que vivem, pois estão longe do habitat e ficam aprisionados) sofrem de forma contínua sérios abusos e limitações que devem ser obstados pelo Estado que tem o dever de preservação do meio ambiente sadio e equilibrado, como claramente recomenda a Constituição Federal. No caso de animais de Circo, a Legislação Estadual Bandeirante é categórica em proibir a apresentação e a utilização dos mesmos, independentemente da ocorrência ou não de maus-tratos, pois reconhece a Lei que esta conduta acarreta aos animais uma cruel e abusiva subjugação.
Em que pese a requerida valer-se de atestados veterinários e de pareceres positivos do IBAMA, o que atende ao aspecto meramente formalístico, certo é que, na prática, a submissão dos animais nos espetáculos circenses, como demonstrado pelo Ministério Público, por levar inequivocamente a uma situação de abusividade e de crueldade com os animais, não pode mais ser tolerada pela sociedade moderna, pois tal prática, imbuída de interesses meramente pecuniários, esta em contradição com o dever do Estado e da coletividade em proteger os animais de situações periclitantes, cruéis e abusivas, máxime quando se deva ser considerado o fato de que nos tempos hodiernos a sociedade brasileira deve estar o mais distante possível das práticas de crueldade e quiçá da barbárie humana.
Como bem apontado pelo Ministério Público o cerne da questão analisada está muito além de mero aval administrativo ou de conclusões veterinárias, pois projeta-se no âmbito biológico, psíquico e comportamental dos animais que são submetidos à vida circense e nestes locais chegam sofrer abusos cotidianos, dado o tipo de vida que levam, na medida em que são subjugados pelos interesses e conveniências econômicas do explorador da atividade circense. Portanto, longe de ser uma manifestação cultural, a utilização de animais em circos é na verdade um ato de manifesta violência, abusividade e crueldade contra os animais e que deve ser evitada pelo Estado.
Ademais, hoje é perfeitamente possível a realização de espetáculos circenses sem a utilização de animais, como vem ocorrendo em paises como Austrália, Canadá, EUA e até mesmo no Brasil, como dão exemplos os Circos Spacial, Popular, Trapézio dentre outros vários mencionados nos autos o que corrobora a necessidade de proibição desta prática violenta, cruel e abusiva, que se revela nada razoável nos tempos modernos em que se deve fervorosamente proteger o meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, para se preservar as espécies animais da insensibilidade ecológica do homem.
Disto se extrai que resta totalmente enfraquecido e afastado o argumento da requerida no sentido da inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 11.977/05 que proíbe expressamente a apresentação ou utilização de animais em espetáculos circenses, pois diante da proibição legal não há qualquer cerceamento à atividade circense, pois segue claro que a utilização de animais não é nem nunca foi necessária à realização e exibição de um bom espetáculo circense, dotado de rico material humano, pois possui como meio de entretenimento e cultura o trabalho elaborado pelos palhaços, trapezistas, mágicos, equilibristas, dentre outros, tornando a utilização dos animais supérflua (abusiva) e que deve e pode muito bem ser evitada.
Observa-se que o trabalho do circo e dos atores circenses não está obstado pela legislação estadual, mas tão somente a utilização dos animais, que por melhor que possam ser cuidados, acabam sofrendo abusos e crueldades no ambiente circense, dadas as condições a que são subjugados, de forma que a Lei proibitiva, tem o interesse de tutelar o bem estar dos animais e o meio ambiente e certamente não acarreta no cerceamento à livre iniciativa da atividade empresarial, que pode ser desempenhada com grande sucesso sem os animais.
Não há ainda qualquer ferida da Lei Estadual ao alegado vicio de iniciativa, pois não tem a Lei por objeto a organização do sistema nacional de emprego e de condições para o exercício de profissões de competência Federal, mas sim regular a proteção dos animais no Estado de São Paulo, além de que o mero interesse financeiro do explorador da atividade circense deve ceder aos interesses maiores de proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo este de maior envergadura e importância, pois permitirá que as gerações futuras tenham preservado o conhecimento das espécies e do meio ambiente.
Certamente o que afronta os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade não é a Lei Paulista ao proibir a utilização dos animais nos espetáculos circenses, que podem ser realizados normalmente sem os animais, pois esta Lei está amparada em comandos constitucionais e lastreada em interesses difusos pertencentes a mais moderna geração de direitos humanos, mas sim o que afronta a estes princípios é a conduta insistente, mesquinha e caprichosa da requerida em pretender manter os animais nos seus espetáculos, sem importar sequer com os inegáveis danos e traumas causados a estes animais consideradas as condições a que são subjugados, nas suas jaulas, ou seja, sem cumprir o seu dever de proteger os animais de quaisquer situações que os façam sofrer e serem abusados durante os espetáculos.
Como bem apontado pelo Ministério Público é a indiferença humana que contribui para o eterno martírio dos animais e que isto precisa ser mudado, o que certamente veio a ser considerado, timidamente, na lei Paulista, pois o comportamento humano deve se desenvolver positivamente e ser orientado sempre de forma a buscar a preservação do meio ambiente e a preservação da vida sob qualquer forma que esta se manifeste e não ficar parado no tempo e se passar a considerar como normais as práticas de atos de violência, de abusos, de deturpação da natureza para com os animais sob a desculpa de que se está fazendo cultura ou se exercendo uma atividade empresarial.
Assiste plena razão ao Ministério Público ao aduzir que toda a artificialidade comercial e festiva dos meios circenses não deixa de ser perversa em relação aos animais cativos que no circo padecem resignados em sua sina servil, sendo a todo instante contrariados em suas naturezas intrínsecas e tendo de cumprir tarefas antropomorfizadas exigidas pelo homem insensato e insensível, imbuído de interesses meramente financeiros o que verdadeiramente configura uma situação de crueldade e abuso que não pode mais ser tolerada em uma sociedade moderna e ordeira e que tem o dever de preservar o meio ambiente, principalmente quando se pode exercer a atividade circense sem a utilização dos animais, como vem se consolidando em tendência mundial.
Ante o exposto JULGO PROCEDENTE a ação civil pública movida por Ministério Público do Estado de São Paulo contra Amália Griselda Rios de Stevanovich e Filhos Ltda ME (Le Cirque) o faço para o fim de A) DETERMNAR que a ré se abstenha de utilizar ou exibir animais nos seus espetáculos, shows, performances e demonstrações de destreza em quaisquer condições e circunstancias durante as suas temporadas realizadas seja especificamente na Comarca de São José dos Campos seja também em todo território do Estado de São Paulo, vez que tal prática fere o artigo 21, da Lei Estadual nº 11.977/05, sob pena de multa diária de R$ 30.000,00, atualizada do ajuizamento da ação, conforme pleiteada na inicial, sem prejuízo de adoção de medidas administrativas como a interdição ou o fechamento do estabelecimento em caso de descumprimento; B) DETERMINAR que a ré se abstenha de exibir animais enjaulados ou acorrentados como propaganda, dentro ou fora do local em que estiver instalado o circo, sob pena de multa diária de R$ 30.000,00, nos termos pleiteados na inicial, sem prejuízo de adoção de medidas administrativas como interdição ou fechamento do estabelecimento. Sucumbente, condeno a requerida ao pagamento das custas e despesas do processo.
P.R.I.C.
São José dos Campos, 28 de fevereiro de 2007.
GUSTAVO ALEXANDRE DA CÂMARA LEAL BELLUZZO
Juiz de Direito
O advogado do LE CIRQUE, inconformado com a r. decisão judicial, ingressou com EMBARGOS DE DECLARAÇÃO sob a alegação de que a sentença estava repleta de equívocos, omissões e contradições, lamentando, ainda, que alguns termos nela consignados haviam atingido a moral da Requerida. Disse que o juiz, ao abandonar as questões jurídicas e partir para a agressão direta, destituiu-se completamente da respeitabilidade e da credibilidade imprescindível a qualquer julgador, o que macula de morte a "sentença" lançada.
De nada adiantou esse reclamo, porque aos 11 de abril de 2007 o juiz sentenciante negou provimento aos embargos de modo a reafirmar seu convencimento original, no sentido de que não havia na sentença embargada qualquer omissão, obscuridade ou contradição a ser declarada.
A partir daí o processo iniciou uma nova fase, rumo aos Tribunais Superiores.
Em 5 de junho de 2007 foi interposto recurso de APELAÇÃO pela defesa, ocasião em que o combativo Advogado reafirmou aquilo tudo que já havia sustentado no processo, para ao final solicitar a declaração de inconstitucionalidade do artigo 21 da Lei 11.977/05 e a improcedência da ação civil pública.
A promotoria de justiça de São José dos Campos, em CONTRA-RAZÕES assinadas pelo promotor Laerte Fernando Levai, aos 15 de agosto de 2007, rebateu mais uma vez todos os argumentos da empresa circense e concluiu dizendo que no Estado de São Paulo o artigo 21 do Código de Proteção aos Animais, que nada tem de inconstitucional, veda a utilização de animais em circos, o que - por si só - demonstra a ilegalidade na conduta da empresa requerida.
O uso de animais em circos - enfatizou o promotor - não é somente uma questão jurídica passível de ação civil pública. Ela também envolve aspectos ecológicos, culturais, pedagógicos e, sobretudo, filosóficos. É necessário, enfim, convencer as pessoas de que circo com animais escravizados não é sinônimo de alegria ou de pureza infantil. É preciso, enfim, mostrar a dolorosa verdade desses espetáculos, afastando o véu que encobre a miserável condição dos animais que neles atuam.
O processo subiu, enfim, ao Egrégio Tribunal de Justiça, em São Paulo, sendo encaminhado para parecer junto à Procuradoria de Justiça de Interesses Difusos e Coletivos. Acolhendo os fundamentos contidos nas contra-razões, o procurador de Justiça Airton Florentino de Barros opinou que fosse negado provimento ao apelo da demandada, porque o pedido inicial foi feito absolutamente conforme o direito, de modo que a ação havia de ser mesmo julgada procedente.
No dia 31 de janeiro de 2008 ocorreu o julgamento do processo perante a Câmara Especial do Meio Ambiente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conforme se pode conferir pelo respectivo ACÓRDÃO:
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL COM REVISÃO n° 704.. 103-5/1-00, da Comarca de SÃO JOSÉ DOS CAMPOS, em que é apelante AMALIA GRISELDA RIOS DE STEVANOVICH E FILHOS LTDA sendo apelado MINISTÉRIO PÚBLICO:
ACORDAM, em Câmara Especial do Meio Ambiente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO, V.U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão. O julgamento teve a participação dos Desembargadores REGINA CAPISTRANO (Presidente), AGUILAR CORTEZ.
São Paulo, 31 de janeiro de 2008.
Samuel Júnior - Relator
PODER JUDICIÁRIO
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Apelação Cível n° 704.103.5/ 1
Voto n° 15.427
Comarca de São José dos Campos -06a Vara Cível
Proc. n° 1071/2006
Apelante: Amália Gnselda Rios de Stevanovich e Filhos Ltda.
Apelado: Ministério Público de Estado de São Paulo
AÇÃO CIVIL PÚBLICA -Meio ambiente Utilização de animais em espetáculos circenses -Obrigação de não-fazer -Proibição da utilização e exibição de animais nos espetáculos circenses -Constitucionalidade do artigo 21 da Lei Estadual n° 11.977/2005
-Recurso desprovido.
Trata-se de apelação interposta por Amália Gnselda Rios de Stevanovich e Filhos Ltda em face da r. sentença que julgou procedente ação civil pública ambiental movida pelo Ministério Público de Estado de São Paulo, que a condenou a abster-se de utilizar ou exibir animais nos seus espetáculos, shows, performances e demonstrações de destreza em quaisquer condições e circunstâncias durante as suas temporadas realizadas em todo o território do Estado de São Paulo, sob pena de multa diária de R$ 30 000,00, atualizada do ajuizamento da ação, sem prejuízo de adoção de medidas administrativas como a interdição ou o fechamento do estabelecimento em caso de descumpnmento. Ainda, a apelante foi condenada à abstenção da exibição de animais enjaulados ou acorrentados como propaganda, dentro ou fora do local em que estiver instalado o circo, sob pena de multa diária de R$ 30 000,00, sem prejuízo de adoção de medidas administrativas como interdição ou fechamento do estabelecimento.
Sustenta a recorrente, em síntese, que o artigo 21 da Lei Estadual n° 11.977/2005 seria inconstitucional, pois cercearia a atividade circense, afrontaria o princípio da isonomia e vedaria profissão legítima; que teria havido incompetência legislativa no surgimento desta Lei Estadual, e que os animais seriam bem tratados
Contra-razões às fls. 303/324.
A Procuradoria de Justiça se manifestou pelo desprovimento do recurso.
É o relatório.
Não assiste razão à apelante.
A Constituição Federal em seu artigo 225 prevê:
"Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ Io - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público (. )
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade"
A proibição de utilização de animais em espetáculos circenses mostra-se revestida de constitucionalidade, na medida em que não contraria legislação federal.
Não há que se falar em inconstitucionalidade do artigo 21 da Lei n° 11 977/05.
Ressalte-se o julgado desta C Câmara Especial do Meio Ambiente:
"(...) Têm competências concorrentes para legislar sobre o meio ambiente, incluindo a proteção aos animais, e sobre o patrimônio cultural, a União para normas gerais e os Estados para normas suplementares, nos termos do disposto no artigo 24, VI e VII e § c.c. artigo 170, VI da Constituição Federal
Estas competências não excluem a dos Municípios para assuntos de interesse local e suplementar às legislações federal e estadual, no que couber (artigo 30, 1 e II, CF, e artigo 6o, § 2o da Lei Federal n. 6.938), sem excluir seu dever constitucional de proteção ao meio ambiente e à fauna, tida esta como vida animal, em sentido amplo, para sua proteção, impedindo práticas que submetam animais a crueldade (artigo 23, VI e VII, e artigo 225, § Io, VI da Constituição Federal c.c. artigo 193, X da Constituição Estadual), juntamente com o Ministério Público e as sociedades protetoras de animais (Decreto n 24.645/34, artigos 1 e 2o §3°).
A Lei Municipal n. 14.014 de 30.06.05, nesse contexto, não invade competências de outras esferas de Poder e se mostra, em principio, constitucional, na medida em que não contraria a legislação federal ou a estadual. É que o legislador municipal, ao proibir a prática, partiu necessariamente do pressuposto de que as apresentações de animais circenses se fazem mediante técnicas de castigo e prêmio, ou seja, submetendo-os a tratamento cruel, que inclui seu confinamento em espaços exíguos de jaulas, também a configurar maus tratos. Por isto, não se vê, nesta fase como possa estar a Municipalidade impedida de legislar proibindo a utilização de animais de qualquer espécie em apresentação de circos e congêneres, no exercício de seu poder de polícia
Assim, e considerado o princípio da precaução, não se pode afastar de imediato a exigência legal municipal A matéria de direito e a matéria de fato não estão desconectadas" (AI n° 464.134.5/4, ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO AMBIENTAL E ANIMAL EUGÊNCIA SCHAFFMAN x STANKOWICH PRODUÇÕES ARTÍSTICAS LTDA Rei. Aguilar Cortez, j . 30/03/2006, v u )".
Além disso, a apelante não demonstrou que a norma enfrentada (art. 21 da Lei Estadual 11 977/2005) estaria suspensa por eventual ADIN.
Ademais, a alegação que os animais são bem tratados não merece prosperar. É incontroverso que os animais submetidos à vida circense sofrem abusos cotidianos, sendo subjugados pelos interesses e conveniências econômicas daqueles que exploram tal atividade. A sujeição de animais a comportamentos anômalos a sua espécie configura abuso.
Ressalta-se, ainda, o parecer da Douta Procuradoria de Justiça: "O pedido está absolutamente conforme o direito, visto que os artigos 225, caput e VII, da Constituição Federal, 193, X da Constituição Federal, 32 da Lei n° 9.605/98 e 21 da Lei Estadual n° 11.977/2005 (Código de Proteção aos Animais do Estado), de modo que ação havia de ser mesmo julgada procedente".
Assim, a r. sentença deve ser mantida por seus próprios e jurídicos fundamentos. Em face de tais razoe sonega- se provimento ao recurso.
SAMUEL JUNIOR - Relator
A Defesa, mais uma vez inconformada, ingressou com EMBARGOS DE DECLARAÇÃO alegando que o V. Acórdão foi omisso ao deixar de analisar suposta afronta ao princípio da isonomia, à invasão de competência exclusiva da União, à análise da proibição das profissões de domador e amestrador no Estado de São Paulo e à questão do direito de propriedade em relação aos animais pertencentes ao circo, além de contraditório porque a decisão final se mostrou contrária à prova dos autos.
O Tribunal de Justiça rejeitou os embargos, por votação unânime, conforme se verifica da decisão abaixo:
EMBARGOS
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
ACÓRDÃO/DECISÃO MONOCRATICA
REGISTRADO(A) SOB N°
ACÓRDÃO 01699775'
Vistos, relatados e discutidos estes autos de EMBARGOS DE DECLARAÇÃO n° 7 04.103-5/3-01, da Comarca de SÃO JOSÉ DOS CAMPOS, em que é embargante AMALIA GRISELDA RIOS DE STEVANOVICH E FILHOS LTDA sendo embargado MINISTÉRIO PÚBLICO:
ACORDAM, em Câmara Especial do Meio Ambiente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "REJEITARAM OS EMBARGOS, V.U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Desembargadores REGINA CAPISTRANO (Presidente), AGUILAR CORTEZ.
São Paulo, 17 de abril de 2008.
SAMUEL JUNIOR
Relator
PODER JUDICIÁRIO
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Embargos de Declaração n° 704.103 5/3-01
Voto n° 16.183
Comarca de São José dos Campos -06a Vara
Proc. n° 1071/2006
Embargante Amália Gnselda Rios de Stevanovich e Filhos Ltda
Embargado: Ministério Público
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO -Ação civil pública ambiental -Utilização de animais em espetáculos circenses -Alegação de omissão -Inocorrência -Embargos com manifesto caráter de infringência -Pré-questionamento Embargos rejeitados.
Trata-se de embargos de declaração opostos por Amália Gnselda Rios de Stevanovich e Filhos Ltda contra V Acórdão desta Câmara, alegando, em síntese, que o mesmo seria omisso e contraditório, pré-questionando dispositivos legais.
É o relatório.
Os embargos têm manifesto caráter de infringência, o que é inadmissível
Além disso, não há nenhuma omissão ou contradição no acórdão que, claramente, negou provimento ao recurso e manteve a proibição de utilizar ou exibir animais nos espetáculos, nos moldes da r sentença
O fato de não ser a solução favorável à tese da embargante não implica em dizer que seja o mesmo omisso ou que não foram observados dispositivos legais.
E "mesmo nos embargos de declaração com fim de prequestionamento, devem-se observar os lindes traçados no art. 535 do CPC (obscuridade, dúvida, contradição, omissão e, por construção pretonana integrativa, a hipótese de erro material). Esse recurso não é meio hábil ao reexame da causa" (STJ, Ia Turma, Rec. Esp. N° 13.843-0-SP, Rei. Mm Demócnto Reinaldo).
Aliás, "o juiz não está obrigado a se ater aos fundamentos (de fato e de direito) indicados pelas partes e tampouco a responder um a um todos os seus argumentos" (v RJTJSP - vol 115/207, citada por THEOTONIO NEGRÃO ín "Código de Processo Civil e Legislação Processual em vigor", Revista dos tribunais, 22a Edição, pág 360, nota-de-rodapé n 71a ao artigo 535 e ED n.213.351 2 deste Colendo Tribunal de Justiça -15a Câmara - Rei. Des. ROBERTO STUCCHI)
Portanto, a matéria foi profundamente analisada na decisão colegiada, nada havendo a se acrescentar ou esclarecer
De qualquer forma, para fins de pré-questionamento, são explicitados os dispositivos mencionados nos embargos - artigos 5o, XIII, 22, I e XVI, ambos da Constituição Federal; Lei Federal n° 6 533/78 e artigo 1228 do Código Civil
Em face de tais razões, rejeitam-se os embargos.
SAMUEL JÚNIOR
Relator
Embargos de Declaração n° 704 103 5/3-01 - Comarca de São José dos Campos
A partir daí a Defesa interpôs RECURSO EXTRAORDINÁRIO, fazendo-o em petição apresentada aos 03 de junho de 2008. Nas razões endereçadas ao Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal, o I. Advogado reiterou suas teses invocadas no juízo de origem e concluiu solicitando fosse declarada, pelo STF, a inconstitucionalidade do artigo 21 da Lei Estadual 11.977/05. Também ajuizou, na mesma data, RECURSO ESPECIAL, requerendo o reconhecimento de violação à Lei federal 6.533/78 e suas regulamentação através do decreto 82.385/78, com relação ao banimento do Estado de São Paulo das profissões de amestradores e domadores. Também pediu fosse decidido pela violação ao artigo 1228 do Código Civil, uma vez que a empresa Recorrente acabou sendo alijada do exercício de seu direito de propriedade em relação a seus animais. Por fim, requereu sucessivamente fosse declarado o Acórdão atacado nulo, por inobservância do artigo 535 do Código de Processo Civil, determinando-se o retorno dos autos à origem para a devida complementação da prestação jurisdicional.
A Procuradoria de Justiça de Interesses Difusos e Coletivos, em novo PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO, opinou contrariamente à pretensão da empresa circense, nos termos da ponderação subscrita pelo procurador Airton Florentino de Barros em 4 de junho de 2008, que, aliás, acabou sendo acolhido pelo Egrégio Tribunal:
"Ao tentar a recorrente trazer no recurso outros fundamentos que não os suscitados nas instâncias precedentes faz com seu apelo excepcional não possa ser conhecido por falta do necessário prequestionamento (STF, Súmula 282). É necessário considerar também que a decisão atacada se baseou em outros fundamentos que não os suscitados no recurso, o que, como é sabido, impede o exame do recurso especial (STJ, Súmula 126. STF, Súmula 282). Ademais, já adotou esse Egrégio Superior Tribunal de Justiça os princípios firmados pela Súmula 400, do STF, segundo a qual há de se admitir mais de uma interpretação a dispositivo de lei federal, desde que razoável. E parece razoável a posição adotada pelo Egrégio Tribunal de Justiça do estado a respeito do objeto do recurso. O resto é matéria de fato e prova que, como se sabe, não pode ser objeto de reexame pela via do recurso especial (STJ, Súmula 7; STF, Súmula 279). Quanto ao mérito, reitera-se o parecer anterior (fls. 329/330) com os suprimentos constantes das contra-razões de apelação ofertadas pela D. promotoria de Justiça oficiante. Diante disso, aguarda-se nem tenha seguimento o recurso especial e, sendo conhecido, seja-lhe negado provimento, como medida de direito e justiça".
Mais uma vez a empresa requerida tentou recorrer, desta feita mediante a interposição de AGRAVO à decisão interlocutória que inadmitiu o processamento de Recurso Especial. Em cota exarada aos 15 de junho de 2009 o promotor Laerte Fernando Levai constatou que as decisões superiores haviam confirmado a r. sentença e que faltava tão somente a apreciação judicial do último recurso defensivo. Em vista disso foi encaminhada cópia da sentença à Prefeitura de São José dos Campos, que ficou ciente de seus termos, até mesmo para impedir eventuais futuras apresentações com animais, da empresa LE CIRQUE.
Aos 13 de novembro de 2009, porém, a empresa circense requerida, nos autos n. 1.182.430-SP, interpôs AGRAVO REGIMENTAL à decisão que negou provimento ao seu Agravo de Instrumento contra a decisão interlocutória que inadmitiu o processamento do Recurso Especial ao Supremo Tribunal Federal.
O ministro Herman Benjamin, relator desse Agravo, pronunciou-se nos termos constantes do seguinte VOTO:
"O Agravo Regimental não merece prosperar, pois a ausência de argumentos hábeis para alterar os fundamentos da decisão ora agravada torna incólume o entendimento nela firmado. Portanto não há falar em reparo na decisão. Com efeito, constato que não se configura a ofensa ao art. 535 do Código de Processo Civil, uma vez que o Tribunal de origem julgou integralmente a lide e solucionou a controvérsia, tal como lhe foi apresentada. Na hipótese dos autos, a agravante alega, em suma, que, desde a contestação, vem afirmando que o art. 21 da lei 11.977/05 fere de morte diversos dispositivos legais e constitucionais Acrescenta que há ainda um grave ponto que não foi esclarecido: a questão dos abusos dos animais, asseverando que não há maus tratos a abusos, assim como comportamentos anômalos, uma vez que a recorrente somente expõe seus animais".
(...)
"Não é o órgão julgador obrigado a rebater, um a um, todos os argumentos trazidos pelas partes em defesa da tese que apresentaram. Deve apenas enfrentar a demanda, observando as questões relevantes e imprescindíveis à sua resolução. Dessa maneira, inexistem vícios no aresto recorrido que determinem a sua nulidade. Assim, o exame dos dispositivos citados nos Embargos de Declaração não era essencial para o deslinde da controvérsia. A despeito do inconformismo da agravante, permanece a ausência de prequestionamento e a incidência da Súmula 211/STJ".
(...)
"Acrescento que, no que concerne à afirmação de que os animais são respeitados e tratados com o maior carinho, a Corte local assim se manifestou: É incontroverso que os animais submetidos à vida circense sofrem abusos cotidianos, sendo subjugados pelos interesses e conveniências econômicas daqueles que exploram tal atividade. A sujeição de animais a comportamentos anômalos a sua espécie configura abuso. Por tudo isso, nego provimento ao Agravo Regimental."
O voto do Ministro Relator Herman Benjamin foi acompanhado, por unanimidade, na sessão realizada em Brasília, aos 02 de fevereiro de 2010: "A Turma, por unanimidade, negou provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques, Eliana Calmon, Castro Meira e Humberto Martins (Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator".
Em 23 de agosto de 2010, enfim, o processo já estava de volta à comarca de São José dos Campos, ocasião em que a digna juíza da 6ª Vara Cível, Márcia Faria Mathey Loureiro, determinou o ARQUIVAMENTO dos autos, com as anotações e comunicações de estilo, ciente o Ministério Público aos 13 de outubro de 2010. A última certidão cartorária, datada de 13 de janeiro de 2011, atesta que mais nada foi requerido no processo, que acabou sendo encaminhado ao arquivo.
CONCLUSÃO
Pela primeira vez na história do direito brasileiro chega-se a uma decisão judicial de mérito reconhecendo que a atividade circense exploradora de animais caracteriza abuso, prática que viola o dispositivo constitucional proclamado no artigo 225 par. 1º, inciso VII, que veda a crueldade. Neste sentido, os reclamos defensivos não tinham mesmo razão de ser porque a empresa LE CIRQUE efetivamente utilizava-se de animais em seus espetáculos, violando também o artigo 21 da Lei 11.977/05 (Código Estadual de Proteção aos Animais), cuja constitucionalidade foi expressamente afirmada pelo Poder Judiciário. Apesar dos esforços defensivos em levar a questão até a última instância jurisdicional, conforme se pode verificar pela sucessão de recursos interpostos perante os Tribunais Superiores, a decisão final do ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça, ao negar seguimento ao derradeiro embargo, deu inteira razão ao juiz sentenciante, Gustavo Alexandre da Câmara Leal Belluzzo, reconhecendo ele que a exploração de animais em circo configura abuso e, conseqüentemente, prática cruel. Isso tudo representa, em síntese, uma inédita decisão jurídica, que ora se transforma em jurisprudência, em favor do reconhecimento de direitos aos animais.
Fonte: Arquivo do Fórum de São José dos Campos
Processo n. 1071/06 - 6ª Vara Cível de São José dos Campos

Nenhum comentário:

Postar um comentário