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segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Argentina reescreverá sua história - sob a ótica de Cristina

América Latina

  Em 27/11/2011

Manobra para deturpar os fatos, dando mais voz e importância apenas a alguns personagens-chave, é antiga e muito usada pelo amigo populista Hugo Chávez

História: Cristina se considera tão importante como alguns 'heróis' argentinos História: Cristina se considera tão importante como alguns 'heróis' argentinos (Presidência/AFP)
"Cristina busca legitimar a sua própria narrativa e o seu papel na história da Argentina. Nas entrelinhas, o que ela quer dizer com 'essas pessoas são importantes' é: 'como elas, eu também sou importante, e os que seguirem minha opinião também serão.'"
Alberto Pfeifer, especialista em América Latina
No romance 1984, o visionário escritor inglês George Orwell cita quatro instituições que formariam o governo da sua ficcional Oceania: o Ministério do Amor, o Ministério da Fartura, o Ministério da Paz e, por fim, o Ministério da Verdade. E, ao contrário do que o nome indica, este último não teria qualquer compromisso com a verdade: ele seria responsável pela falsificação de alguns fatos do passado, que ganhariam uma nova versão revisada pelo estado. Para além da ficção, deturpar acontecimentos e reescrever a história foi (e ainda é) realidade em muitos países. Entre os infindáveis exemplos que se pode citar, estão os vários tipos de censura praticados pela Alemanha nazista, pela Itália fascista e pelo regime de Pol Pot no Camboja. Na ex-União Soviética, durante o regime de Josef Stalin, livros escolares foram reescritos, jornais velhos foram reeditados, e os desafetos do ditador chegaram a ser apagados de fotos históricas, como o revolucionário comunista Leon Trotsky. Hoje, essas manobras ganharam um novo viés - igualmente preocupante. Na América Latina dos populistas, a nova mania dos chefes de estado é maquiar a trajetória de seus ídolos pessoais tranformando-os em heróis do país.
A última que aderiu ao grupo delirante foi a presidente argentina Cristina Kirchner, que esta semana determinou por decreto que o país terá a sua história revisada. Mas não tudo, claro, apenas alguns personagens. Os de sua preferência serão exaltados, como o marido Néstor Kirchner, morto há um ano, e Evita Perón, com quem compara sua "história de amor". Por outro lado, quem não lhe desperta nenhuma admiração terá a importância minimizada (confira uma lista com os vilões e heróis de Cristina no fim desta reportagem). A tentativa da chefe de estado de impor sua própria ótica ao mundo - diretamente ligada ao ego e ao apego ao poder - lembra iniciativas ainda mais autoritárias de seus colegas bolivarianos. Quem lançou a proposta de "refundar o país" foi o venezuelano Hugo Chávez, ao anunciar um plano de doutrinação embasado na reforma do currículo escolar de instituições primárias e secundárias do país, em 2007. A ideia - inspirada no autoritarismo de Fidel Castro em Cuba - foi imitada por seu pupilo Evo Morales, que inventou um "Estado Plurinacional" a fim de destacar os índios de forma excepcional na Bolívia.
Não é de hoje que o governo argentino tem se mostrado bastante preocupado com a imagem pública de sua gestão. E como para Cristina a imprensa local "distorce a realidade", ela decidiu agir por conta própria para dar a sua versão dos fatos, moldando o passado para que o presente pareça mais coerente. Financiado com recursos públicos, o novo instituto terá na linha de frente o historiador Mario "Pacho" O'Donnell, que coordenará uma equipe de 33 pessoas, entre historiadores, ministros, dirigentes e jornalistas - todos aliados da presidente. O objetivo da organização é "estudar, investigar e difundir a vida e a obra de personalidades e circunstâncias que não tenham recebido o reconhecimento adequado no âmbito institucional e de caráter acadêmico", diz o decreto 1880 - sem especificar o que Cristina entende por estudar e investigar. "O revisionismo histórico de figuras e episódios importantes para o governo atual buscar olhar para o passado com os olhos do presente, ignorando qualquer rigor científico da busca por uma verdade histórica", afirma o professor de Relações Internacionais da Universidade Católica Argentina (UCA), Jorge Liotti.
Daniel Garcia/AFP
Quando foi reeleita, Cristina posou com a foto do marido, a quem também quer exaltar
Cristina com a foto do marido, a quem também pretende exaltar
Manipulação - Além da falta de conexão com a realidade, reorganizar as referências históricas de um país a seu bel-prazer é também uma forma de manipular a opinião pública, ressalta o professor Alberto Pfeifer, especialista em América Latina e membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da Universidade de São Paulo (Gacint - USP). "Por mais que as pessoas tenham a possibilidade de decidir no que acreditar, a manobra altera de certa forma os pesos e as proporções da história." E seguindo o (mau) exemplo de Chávez, Fidel e Morales, Cristina também tenta "refundar" o seu país, sem levar em conta sequer o contexto de cada época. Completa Pfeifer: "Essas técnicas populistas, herdadas também de seu marido Néstor, estão cada vez mais difundidas na América Latina."
O problema não está na simples revisão de fatos, mas sim na alteração desordenada do curso da história pelo presidente de plantão. "Não houve nenhum novo documento que prove essa mudança de visão", afirma Pfeifer. "Cristina busca, através da reformulação da narrativa histórica, legitimar a sua própria narrativa e o seu papel na história da Argentina. Nas entrelinhas, o que ela quer dizer com 'essas pessoas são importantes' é: 'como elas, eu também sou importante, e os que seguirem minha opinião também serão'".
Assim, Cristina transforma a história de seu país em um campo de batalha política, nas palavras do analista político e historiador argentino Rosendo Fraga, diretor do centro de estudos Unión para la Nueva Mayoría. "Isso não é algo novo no país, mas está adquirindo - nesta etapa kirchnerista - uma intenção político-ideológica mais marcada", explica, acrescentando que "o novo instituto não tem por objetivo buscar a verdade histórica, mas impor uma determinada interpretação que forme parte da história do oficialismo". Na prática, isso significa que quem exaltar, por exemplo, o ex-presidente Domingo Faustino Sarmiento (1868-1874) - considerado na história "o difusor da educação pública", mas que para Cristina foi um líder "europeizante" e que desprezava a cultural local - se colocará contra o governo. Por outro lado, quem admirar a figura de Juan Manuel de Rosas - um tirano para a opinião pública e o "primeiro grande nacionalista argentino" para a presidente - estará apoiando os Kirchner. E essa distorção pode até levar a um embate mais sério, ressalva Fraga. "Uma visão equilibrada da história contribui para a tolerância política, enquanto uma interpretação que a mostra como branco e preto - ou bons e maus - só provoca intolerância".
Veja

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