Um dia ele apareceu na vilinha, não se sabe de onde. Já chegou adulto, meio labrador, meio lata, com o rabo cortado. Alguns o chamaram, então, “Cotó”. Outros o tinham por “Martim”, jamais consegui saber em razão de que marca. Estava por ali, entre as casas, havia bem uns 12 anos. Os “cachorristas”, dadas algumas características, lhe atribuíam entre 15 e 18 de vida. Contrariava a máxima de que cachorro de muitos donos morre de fome. Ele não! Estava sempre bonito, garboso, saudável.
Livre, sua simpatia era objeto de disputa. Cotó era personagem das nossas férias, dos nossos fins de semana, de muitos dos nossos momentos de alegria. No sábado, saiu para não voltar. Não dava mais pra ele. Os rins tinham parado de funcionar. Já não conseguia mais se alimentar. Só lhe restava a dor. Dor silenciosa, respiração ofegante, cansaço extremo. Foi levado ao veterinário. Um primeiro remédio o fez dormir, e outro pôs o ponto final.
Os dias podiam ser instáveis; o céu, temperamental; o sol, incerto; a temperatura, variável. Mas Cotó restituía todas as nossas esperanças de dias melhores. Era o portador da memória daquele lugar. Mais do que qualquer um de nós, sabia que um vento podia enegrecer o céu ou, então, abri-lo num azul largo e ancestral.
É provável que voltasse sempre em busca de comida — não aceitava nada que não fosse carne ou derivado, o luxento! —, e a gente confundisse aquilo com afeto. Mas quem se importa? Quem é tão vaidoso a ponto de inquirir os reais sentimentos de um cachorro?
Às vezes ele interrompia a minha leitura ou outra coisa qualquer que estivesse fazendo. Postava-se à minha frente. Encarávamo-nos, então, com camaradagem. “E aí, meu? O que é que manda?” Ele se aboletava por ali, descansava o focinho entre as patas, fechava os olhos devagar e parecia me dizer: “Isso vai se repetir para sempre. A vida pode ser assim, mansa…” E, por alguns segundos, minutos talvez, eu conseguia não pensar em nada, não querer nada, não me importar com nada. Dois camaradas satisfeitos, silenciosos, ocos de anseios, como a paisagem, como a seqüência dos dias, como o marulho mais ao fundo.
Cotó tinha a generosidade das coisas certas. Enquanto estava por ali, era como se nunca tivéssemos sido mais jovens, nunca tivéssemos sido mais saudáveis, nunca tivéssemos sido mais ágeis, nunca tivéssemos sido mais otimistas, nunca tivéssemos sido mais viçosos. Naquela pequena vila, ele nos dava a ilusão da eternidade e alimentava as nossas esperanças.
Morreu Cotó, e o tempo nos invadiu. Terei de aprender a amar outra narrativa na mesma paisagem, da qual ele não é personagem. Eu devo ter imaginado — acho que sim, não estou bem certo — que me viriam os netos e que ele continuaria por ali a atestar que nem tudo nos foge pelos vãos dos dedos, aos poucos, sem nem mesmo um suspiro audível.
Isso não é política, como vêem. É que Cotó tomou seu rumo. Lá se foi ele, sem consultar ninguém, como sempre, dono do seu nariz.
VEJA
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