Entrevista
O pesquisador chinês Liu Guozhong conta como os escritos originais do filósofo perderam-se no tempo e só foram localizados no século XXI
Ana Clara Costa
Para pesquisador, descoberta afetará estudos em vários ramos (Gautier Willaume/Getty Images/iStockphoto)
Há cerca de um ano um grupo de pesquisadores chineses vem causando polêmica no meio acadêmico. Em um estudo intitulado Os Manuscritos de Bambu de Tsinghua e a Antiga Civilização Chinesa, o professor Liu Guozhong comprova, por meio de análises científicas, que os escritos nos quais se baseia a obra de Confúcio não são os vestígios mais antigos de sua literatura. Segundo o estudioso, a versão que por séculos foi considerada a “original” do livro Shang Shu (a bíblia da tradição chinesa) não é a verdadeira.Resultados de testes feitos com a técnica de datação em carbono 14 mostram que os documentos considerados originais pelos chineses foram produzidos em 300 d.C. No século XXI, no entanto, a história do Shang Shu sofreu uma reviravolta. Manuscritos antiquíssimos do livro de Confúcio foram misteriosamente encontrados em Hong Kong e adquiridos por um emérito da Universidade de Tsinghua, em Pequim, onde Liu Guozhong leciona. Em 2008, todo o material foi doado à universidade e as pesquisas sobre sua veracidade tiveram início.
“Após a doação, a Universidade utilizou técnicas científicas para restaurar, arquivar e permitir a pesquisa dos manuscritos. Mais de dez autoridades especializadas foram convidadas para analisar a autenticidade e avaliar a relevância acadêmica de tudo aquilo”, afirmou Liu Guozhong em entrevista ao site de VEJA. Ao final dos estudos, os pesquisadores detectaram que os documentos encontrados em Hong Kong datavam de 300 a.C – 600 anos antes da data que se acreditava ter surgido o mais antigo exemplar do Shang Shu.
A confusão em torno dos escritos do filósofo chinês é similar à que ocorre em relação à Bíblia. Ambos os livros embasaram as tradições de civilizações inteiras e foram escritos a partir de ideias e ensinamentos passados verbalmente ao longo de gerações. As descobertas de Guozhong não garantem que Confúcio sozinho tenha escrito tais manuscritos. Elas apenas mostram que as ideias contidas nas versões por ele estudadas tendem a ser mais fiéis, devido ao fator temporal, que aquelas transcritas no livro de 300 d.C.
Na China, há vozes dissonantes. A Academia de Ciências Sociais, considerada uma das instituições mais respeitadas no país, desconsidera o fato de o Shang Shu que todos conhecem ser uma versão falsificada. Em artigo, pesquisadores ligados à instituição afirmaram que a datação verificada nos testes não altera em nenhum aspecto a tradição chinesa. Liu Guozhong, contudo, não acredita que sua pesquisa tenha sido em vão. “É uma descoberta muito rara e importante, que afetará os estudos em vários ramos interdisciplinares, como história, arqueologia e filologia antiga”, afirma.
Como se deu o início da sua pesquisa sobre a obra de Confúcio?
A pesquisa não foi feita apenas por mim. Temos uma equipe de mais de dez pessoas trabalhando neste projeto na Universidade de Tsinghua. O líder da equipe, Sr. Xue Qin Li, além de ser um historiador conhecido e especialista em escritos e documentos antigos, também possui várias pesquisas e estudos excelentes sobre os manuscritos feitos em ossos ou cascos de tartarugas, artigos de bronze, documentos e livros antigos, como o Shang Shu, de Confúcio.
A primeira edição do relatório sobre os manuscritos gravados em bambu (também conhecidos como “manuscritos de Tsinghua”) foi publicada em dezembro de 2010, com base em nove documentos encontrados. Entre eles, há manuscritos que se referem ao livro antigo de Confúcio e a outros documentos e livros extintos que são categorizados como referências do “Shang Shu”.
Os manuscritos encontrados são comprovadamente originais?
Sim, os documentos encontrados nos manuscritos de Tsinghua são as transcrições mais antigas do “Shang Shu”. Eles foram roubados de um túmulo antigo e contrabandeados para Hong Kong. Posteriormente, graças a um emérito da Universidade de Tsinghua, os documentos foram comprados e doados à Universidade a fim de preservá-los e estudá-los. A doação foi feita em 2008.
O fato de os manuscritos terem sido roubados de um túmulo não coloca dúvidas sobre sua autenticidade?
Não, em nenhum aspecto. Após a doação, a Universidade, por meio de técnicas científicas como a prova do carbono 14, iniciou um trabalho de preservação, arquivamento e pesquisa dos manuscritos. Mais de dez autoridades especializadas foram convidadas para analisar a autenticidade e avaliar a relevância acadêmica dos manuscritos. A conclusão desses estudos demonstrou que a obra encontrada possui os conteúdos fundamentais da cultura tradicional da China. Outros testes científicos também confirmaram o resultado de que os manuscritos realmente são relíquias preciosas feitas há mais de 2.300 anos. E, por meio desses mesmos testes, também se comprovou que a versão que se acreditava verdadeira foi produzida durante período dos "Reis Combatentes", aproximadamente em 305 d.C, ou seja, há aproximadamente 1.700 anos.
Quais são as principais diferenças entre os manuscritos antigos e os que deram origem à versão atual do livro de Confúcio?
O livro tem duas versões: Shang Shu de escrita antiga e Shang Shu de escrita moderna. Diferentemente da segunda versão, sobre a qual não há dúvida, a validade do “Shang Shu” de escrita antiga vem causando discussões entre os estudiosos. Comparando-se os capítulos do “Shang Shu” de escrita antiga aos “manuscritos de Tsinghua”, os conteúdos são completamente distintos em diversos capítulos. Essa obra de Confúcio é baseada em uma versão falsa. A versão que se acreditava ser a verdadeira foi feita depois do início da dinastia Qin, por volta de 300 d.C, influenciando as dinastias Ming e Song. Já os manuscritos mostram que a obra original, na verdade, foi escrita antes da dinastia Qin. Logo, são épocas completamente diferentes. São séculos que separam uma obra de outra.
Essa pesquisa altera a forma como os chineses verão a obra de Confúcio a partir de agora?
É uma descoberta muito rara e importante, que afetará os estudos em vários ramos interdisciplinares, como história, arqueologia e filologia antiga. Mas é preciso admitir que, por outro lado, a descoberta não altera a moral, as atitudes e os ensinamentos atribuídos a Confúcio, e que são há muitos séculos difundidos entre os chineses.
http://veja.abril.com.br/noticia/internacional/%E2%80%9Cobra-de-confucio-e-baseada-em-uma-versao-falsa%E2%80%9D
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